ARRAZOAMENTO CANINO

A humana não estava a correr da morte, vinha na vagareza do descanso das chegadas e, num instante de alucinagem, não dei do juízo de me pôr na berma a espreitar se avistava um ser vivente ou rodamóvel vagueando nas esperas da morte do dia. Vistanciei as luzes e já não tinha freagem para minha alucinada correria. Senti o bate-bate da latoaria, mas não despenquei.

A cabeça zonzozagueou, fiquei baratonteando por uns aquis até que dei de mim e uns longes me chamavam. Eram os esganiçados uivos de um de meus duplicados, o mais fraquejado, filhote inda na espera das lonjuras da vida. Com o coração a disparates incontrolantes fiquei a esperançar coisa nenhuma e amortecismei num canto, sentindo a carcaça desconjuntada.

Ela não parou e afugentei-me para me escapar de lição de condutas ou dos dispensários de quanto me custaria o abatimento do rodomóvel. Os humanos têm acostumamentos engraçados se enraivados e achincalham os ninguéns se não encontram justificagem para seus acidentes ou descasualidades.

Passei uma pata pela pelagem sangrenta e tonterodeei ao chegar nas encostas da berma já nebulosa pela escuridade da noite. Ou seria pela pancadagem em minha pata dianteira e pela focinhola que dessangrava incontinente?

Vi que o rodomóvel retornava com a humana a vasculhar as ribeiras do local a busca de verificar o arrazoado da estrondagem, que decerto uivara em seus ouvidos. Notei que ela me investigava pelo espelho de revés quando fez a desaceleragem e no logo que voltou a minha procura.

Ela parou para a investigativa e percebeu que havia despregueado o parachoque do rodomóvel e minha pelagem esgrichava no rachante lateral e que a tintura, no pique, também rachou com a passagem de minha velocidade. Dei acesso ao medo e ocultei-me na sombragem de um casebrio e quedei na espreitagem de que ela desse cansaço e amainasse a ira que a batida lhe aferroalhava.

Ainda ouvia os ganidos de meu rebentito. Era a barriga encostada nas costas, que não se enchia depois do desfalecimento da mãe a dois entardeceres. O chaspe de carne que eu trazia nos beiços, que fora a motivação de meu disparo demente a tranpassar para a berma, daria para umas boas bocadas para muitos sóis. O miúdo nascera com os olhos voltados para a morte e só de mim dependia o livramento.

Estatualizei sem gemido até passar os enquantos da pesença humana de redor do rodomóvel. Ela avistalhava nos aredores mas não sentiu minha respiração, nem os gemidos que a machucadura me acossava. Achumaçou entre os dedos os pelos que se abraçaram à lata machucada e perdeu o olhar nos aléns da noite.

Sei que procurava pela vultagem peluda, quem sabe para dar-me socorramento. Eu não podia ariscalhar de levar uns pontapeitos e solitudear meu pequenito, sem os acolás de minha chegada. Sou seu salva-guarda!

A humana se foi ainda retrovesando a sombra de um canino, com um olhar quedado, como se a mente lhe tivesse preparado uma miragem, mas eu aprendi, na desconfiagem, a manter essa ossatura sem creditar na bonança humana.

Cleusa Piovesan

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Cleusa Piovesan
Enviado por Cleusa Piovesan em 10/07/2020
Código do texto: T7001527
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