O sábio e a quarentena.
Havia tempo não o via, meu paciente, que com a convivência, se transformou em um amigo de muitas lições a serem registradas. Devido a idade, 91 anos não é pouco, e os riscos de se deslocar ao ambulatório, acabamos nos falando esporadicamente por telefone.
-Como vai Alberto?
-Oi Doutor, vou muito mal.
Respondeu com seu clássico italiano, que parece estar irritado. Para quem o conhece entende. Ele é um sábio com tantos conhecimentos da vida, mas temperamento e sotaque, não se perde, nem mesmo com o passar dos anos.
-Alberto, onde mesmo você nasceu? Saiba que hoje te liguei, não como médico, além do mais, eu é que vou me consultar com você.
Notei que do outro lado, em sua solitária vida na casa de repouso, o que antigamente falávamos asilo, ele sorriu.
-Mas consultar comigo? Nada tenho para te receitar, sou um velho, agora quase partindo dessa vida...
Nada mais "italiano" como resposta. Rebati logo.
-Que isto, rapaz. Complementei para levantar o astral.
-Você tem muito que ensinar, lições de vida não podem ficar guardadas.
Notei novamente um murmurio de riso e felicidade.
-Eu nasci em uma Comuna chamada Lucca, perto de Pisa, um lugar pequeno na Toscana, muito charmoso e pouco conhecido.
-E o que você fazia lá?
-Quando nasci? Nada fazia, nasci , era só uma criança.
Notei o humor, do italiano, querendo caçoar da minha pergunta, não me importei com o gracejo, embora de início parecia ríspido.Era seu jeito.
-O que você fazia depois, depois de ter nascido? Reiterei minha pergunta sabendo que ele havia entendido.
-Wilson, minha família tinha um pequeno comércio, na verdade uma barraca que vendíamos as coisas em uma feira, que colhíamos em nossa horta, uma região rural, próximo a comuna de Lucca.
-Você então ajudava seu pai?
-Sim eu trabalhava já bem novo para ajudar meu pai a vender aquilo que colhíamos, tudo muito puro, sem veneno que se usa hoje. Hoje tudo muito porco, muito sem cuidado. causa danos a saúde, lá era natural.
-Interessante, e o que você guarda de lembrança?
-Nossa, faz tempo né? Realçou.
-Era dias de dificuldades, meu pai era muito exigente, mas deixou uma lição. Honestidade.
-Algum fato te marcou? Você lembra desses dias?Insisti.
-Olha, lembro de meu pai que tinha uma austidade, insisivo, gênio difícil, sabe como, não é? Italiano, mas correto em suas condutas.
Posso te contar, entre tantos,um acontecimento que me marcou naquele tempo.
-O que ? conta sim. respondi, curioso.
-Meu pai, como disse,vendia frutas e outras coisas como verde, verduras, então sempre precisava de caixas de papelão, embalagens, para guardar frutas, ou até quando vendia, ter como carregarem as compras. Havia um comerciante de uma grande loja do local, na qual meu pai comprava essas embalagens. Quando juntava uma certa quantidade de dívida, ele ia lá, conversava com ele e fazia o acerto dos compromissos.
Meu amigo tomou um folego, para respirar, e continuou.
-Só que tudo na confiança mesmo, na palavra, sabe que naquele tempo, a palavra era o que valia. Hoje, ah! Já não vale mais nada.
-E aí, o que aconteceu?
-Aconteceu que de repente, o velho, dono da loja grande, teve lá um infarto, e faleceu. Aí que fiquei conhecendo de fato meu pai. Havia uma dívida. Sem papel nenhum para comprovar.
-E o que fez seu pai?
-Pois o meu pai, procurou a família, e falou da dívida, que para eles pouco representava.Eram gente de posse, abastados, e assim vendo o desinteresse deles de cobrar o débito fez a proposta:
-Olha, devo seu pai que faleceu, uma importância em dinheiro, e sei que temos muita gente precisando em nossa comuna, de alimentos. Posso fazer as contas e transformar em doação de comida o que devo?
Notei naquele instante que ficaram admirados com esta atitude, pois nada tinham para fazer a cobrança,nada no papel.
- E então?
-Então meu pai pegou exatamente o que devia em alimentos, e distribuiu para pessoas da região, que mais necessitavam.
Mesmo do outro lado da linha, senti um certo ar de orgulho, uma emoção na voz do meu amigo, que prosseguiu.
-Aquilo para mim, foi uma pura demonstração de palavra, ele se quisesse poderia muito bem ficar calado, o que me levou a perguntar a ele naquele dia:
-Pai, você pagou uma dívida de uma pessoa que morreu, sem comprovante de que devia?Ninguém sabia né?
Ele olhou para mim e respondeu meio bravo.
-Como ninguém sabia? Eu sabia , e ainda, você, sabia, não é?
-Eu sabia sim. Respondi a ele.
E ele olhando para mim complementou.
-Que belo exemplo eu ia dar a você, se eu não pagasse.
E frisou:
-Por isso, pelo exemplo, de você saber, já me bastava para quitar meu débito.
Essa herança de meu pai, foi a mais importante que tive,me serviu para a vida.E se não acumulei fortunas, carrego comigo a tranquilidade de ter a consciência sempre limpa.
- Bela lição, Alberto, sabia que iria ter estória.
Ele ainda completou:
-E como dizem, "o que importa não é só fazer o bem, errado é ter oportunidade de ajudar o próximo, poder agir certo, e nada fazer. O bem que se deixa de fazer é pior que fazer o mal".
Entendi perfeitamente o que ele quis dizer, constatei porque eu o achava um sábio...