Despertar

Estava eu lá novamente. Corpo pesado, o cérebro tentando se localizar e os dedos empreendendo uma disputa hercúlea na tentativa de desativar o alarme do celular. Já se passaram cem dias após o início da quarentena e várias foram as impressões desse período. Do temor ao caos, do desespero à inércia, da alta produtividade ao marasmo intelectual.

Às sete horas da manhã eles estão lá, logados do outro lado da tela, com rostos escondidos no falso anonimato, sob cobertores, pantufas e cabelos desarranjados. Vez por outra o silêncio inicial é quebrado por um bom dia rouco, com cheiro de café e pão na chapa.

A aula se inicia com cerca de cinco minutos de tolerância, após os recados iniciais. 9º ano, Segunda Guerra. Um tema que, presencialmente, desperta um grande interesse por parte dos alunos. De maneira remota é impossível ter essa percepção. O fator humano se reduziu de maneira considerável no primeiro semestre desse ano.

Ao começar a aula lembro-me de Grasmci ao descrever a relação entre professor e aluno na escola moderna. Como ser um maestro sem ter sua orquestra ali perto? Como reger os músicos se a batuta se agita solitária acima de uma mesa cheia de livros iluminados na contraluz?

A ausência de conversas paralelas, que em um primeiro momento parecia um sonho de todo professor, começa a incomodar. Sem piadas, sem brincadeiras nem pedidos inusitados.

No transcorrer da aula, circunscrito em meio a minha biblioteca, me concentro no tema e passo a ilustrar minhas falas com livros e textos que estão ao alcance de meus braços. É assim com a autobiografia de Adolf Hitler, com a obra prima de Marc Bloch ao descrever a derrota francesa para os exércitos nazistas ou até mesmo com o clássico “A Alemanha de Hitler” do professor Roderick Stackelberg. As quatorze características do fascismo são apresentadas por meio de um texto disponível na internet. Identificando cada ponto com os alunos começam a surgir algumas intervenções contextualizando o tema.

Ao encerrar a aula me vem a percepção que, diferente de anos anteriores, pude usar de maneira mais prática recursos bibliográficos para embasar as análises sobre o período discutido.

Encerro a gravação da aula e o vídeo automaticamente fica salvo na plataforma, podendo ser acessado a qualquer momento pelos alunos.

O fim da quarentena parece se aproximar e várias perguntas nos afligem todos os dias: O que virá depois disso tudo? Vai mudar algo? Como a sociedade vai se comportar diante de uma situação extrema?

O celular desperta, tento desligar, mas o empurro e cai no chão. Lá fora a chuva fina é um convite à procrastinação.