Dois Amigos
Eram dois amigos que tinham posições políticas bem diferentes em relação a sistemas de governo e, mais predominantemente no cenário atual, sobre a figura do presidente da nação. Mais do que diferentes, eram antagônicas as posições.
Costumavam se encontrar no bar que frequentavam. O papo de botequim sempre tem um cardápio tão variado quanto o cenário das estrelas no firmamento em diferentes horas, tantas quanto duram o sorver dos líquidos etílicos que alimentam a alma. Coisa de quem entende a dinâmica do bar.
Desde o futebol até as beldades que cada um dizia conhecer, tudo era motivo para animadas charlas, naquela informalidade agradável que transcorre sem objetivo definido. Os projetos de trabalho, as preferências gastronômicas, o tratamento de um sintoma recente, a música, as piadas mais variadas, tudo sempre deixava uma pauta a ser continuada no encontro seguinte. Riqueza de assuntos que mantém a coesão entre as pessoas. Coisa de quem entende a dinâmica do boteco.
Quando o assunto vertia para a política, a ferrenha defesa das convicções costumava dirigir a conversa para um tênue limiar da ação de não mais dar atenção e ouvidos ao que o outro diz. Quase uma intolerância.
Este tema costuma tender à divisão da sociedade em hordas e o perigo é que o coletivo, esse substantivo abstrato, faz o indivíduo desculpar a sua própria agressividade por conta de estar pertencendo a determinado grupo e, supostamente, defendendo a sua bandeira. Mal comparando, é como a gangue, em que um componente participa da agressão coletiva gratuita e se absolve no seio do agrupamento efêmero e irresponsável.
Um fenômeno a ser estudado. Por que a política, esta atividade cidadã, está a provocar mais dissentimento do que a profícua troca de ideias no esforço da progressão, seu precípuo estado de arte?
Mas os amigos, naquele relacionamento de prazer do bar, sabiam a hora de recolher a artilharia, conforme a elegância que os anos de experiência e senioridade fundados na vida puderam edificar. Coisa de quem entende a dinâmica de um estabelecimento popular da cachaça.
A ocorrência de uma epidemia repentina na cidade fez com que as pessoas, subitamente, tivessem que se precaver e tomar alguns cuidados para evitar o contágio. Os procedimentos adotados e impostos pelas autoridades determinaram o fechamento temporário das áreas e dos estabelecimentos em que pessoas circulavam. As pessoas tiveram que se resguardar e adotar uma quarentena compulsória para a sua própria segurança e da coletividade e para a preservação do trabalho da saúde pública. Uma mudança súbita e radical na rotina das pessoas. E o botequim, esse espaço democrático que só encontra paralelo no ginásio da antiga Grécia, fechou.
O confinamento obrigatório indispensável transformou a vida, da noite para o dia, de quase toda a população. As pessoas passaram a se reinventar no convívio com seus familiares dentro de casa e na relação com as mais diferentes instituições públicas e privadas. No quesito do relacionamento entre indivíduos explodiu o já tão disseminado uso das redes sociais. Pessoas começaram a conversar com as outras pelo telefone e, muito mais do que isso, através das plataformas que promovem a troca de mensagens e as postagens de matizes diversos.
Tudo ficou mais frenético nesses canais cibernéticos. As facilidades de comunicação se fizeram valer nesta situação de grave ameaça à saúde mundial. Esta era a grande diferença de uma pandemia no século XXI para as outras pestes do passado da história da humanidade.
Proliferaram comunicações dos órgãos governamentais, dos órgãos de imprensa, publicações de opiniões de cidadãos antenados com a situação, de outros destilando ódio contra os mais variados segmentos desafetos, de piadas que refletiam a histriônica vocação daquele povo e, claro, tudo isso replicado em uma espiral exponencial que superava ao próprio severo contágio do vírus vilão do momento. Não faltavam os especialistas e os comentaristas de plantão com a sua verve de quem detém o púlpito.
E toda hora aparecia alguém com uma frase que resumia tudo.
Os dois amigos também aderiram ao novo método de interação e passaram a se comunicar pelo whatsapp, a sua plataforma preferida. Mandavam piadas, provocações cômicas de toda ordem, fotos e vídeos de belas mulheres, curiosidades as mais diversas e, claro, notícias que se alinhavam com as suas preferências sociais e convicções políticas. Convicções políticas.
Novamente a política começou a tomar uma dimensão e um papel mais radical no relacionamento humano, agora a distância. Passaram a replicar notícias políticas que achavam interessantes ou, melhor dizendo, que lhe suportavam as ideias e, ainda, publicações antagônicas sobre a atuação do presidente da nação em face da crise sanitária.
Quando um reproduzia uma mensagem, ou uma notícia, o outro comentava dentro dos seus parâmetros de avaliação. Não raro, o que havia enviado a mensagem original achava que o comentário do amigo havia sido brusco e respondia, por vezes, num tom ainda acima, dando início a um bate-boca eletrônico. Posições podiam ficar mais extremadas, muitas vezes, e a comunicação se encerrava com o sentimento claro de insulto e desavença.
O que se observava é que no contato da rede de computadores estava ausente o calor humano da mesa de bar, em que a empatia presente cuidava de manter na conduta dos amigos a compostura e a elegância. Aquela compreensão emocional que vai medindo os parâmetros da coexistência e retroalimentando o seu sistema íntimo para manter a civilidade e, mais do que isto, a amizade tão cara como valor humano.
A troca de mensagens entre os dois amigos continuou nesse diapasão e foi crescendo, com cada um postando cada vez mais mensagens, quase que numa guerra de quem replicava mais conteúdo. Chegaram ao ponto de pedir ao outro que não respondesse mais, pois a resposta não seria lida. A sua notificação era tão somente para ser absorvida pelo outro, num esforço infrutífero de que pudesse haver algum convencimento nisto.
Entre um comentário e outro, considerado mais extremado pela outra parte, o julgamento era de que aquilo era intolerável e não poderia ser aceito. Interrompia-se ali a amizade de uma vida inteira. E os dois amigos pararam de se falar, eletronicamente, bem entendido. “Fascista!”, rosnava um para seus botões; “marxista!”, resmungava o outro diante do espelho para calibrar a melhor o contorno da boca a emoldurar os dentes cerrados.
A custo os dois amigos, no âmbito das suas reflexões solitárias, foram se dando conta de que, assim como cada um não seria, jamais, convencido da posição do outro, era legítimo supor que o outro também jamais seria convencido da sua própria posição. E que a discussão política, quando exacerbada, tem essa característica de não mudar a posição de ninguém. Quando eles replicavam textos e notícias nas suas mensagens, eram conteúdos que confirmavam aquilo em que cada um acreditava. Nunca havia a avaliação do contraponto. Passaram todo o tempo de conversa a distância a exercer uma espécie de raciocínio motivado, onde se acredita naquilo que confirma as esperanças e preconceitos de cada um. O porquê disso talvez fosse a existência de valores morais diferentes, que não conseguem coexistir se não houver tolerância.
Junto com a avaliação de que o outro estava errado, cego em não enxergar o óbvio, em algum canto da consciência brotava um pensamento de que a tolerância beneficiava o ouvir do outro para poder enriquecer qualquer colóquio, ou nem que fosse para validar uma linha de raciocínio. Passaram a anotar algumas reflexões e a construir uma nota para poder mandar ao amigo em um momento oportuno, quando aquela poeira de semicondutores baixasse.
Ambos estavam imbuídos do mesmo espírito conciliador, e escreviam, embora com palavras diferentes, numa concordância de propósito como nunca havia acontecido nas tardes e nas noites de conversa no boteco.
“Eu não me sinto na obrigação de responder a tudo o que me mandam. Mas me sinto no direito – apenas isso, o direito – de apor comentários argumentativos quando o teor da mensagem sugere alguma inteligência e me provoca reflexões a ponto de produzir pensamentos com algum nexo causal dentro daquilo que a minha cognição chega a trabalhar”, escrevia um.
“Veja, é a dinâmica da conversa, um processo que se dá pela discussão entre pessoas unidas pelo interesse comum da busca”, parecia continuar o outro. “Se não houver esse interesse todo o processo de nada valerá e fica inválido.”
“Mas todo o conjunto dessa busca, desde o período clássico da civilização ocidental, tem a expressão natural no diálogo”, prosseguia um. “Pode até se tornar um exercício da dialética, em que à uma tese é aposta uma antítese e disto resulta a síntese, ou uma nova tese. Ou pode não.”
Tudo parecia tão afinado numa conversa ainda inexistente. “De qualquer modo, Feuerbach já disse que o eu não pode estar sem o tu. Só uma coisa me faria abdicar deste processo, que é a preguiça mental. Isto, no entanto, não está nos meus planos presentes e nem futuros.”
E escreviam que planejavam um fraterno abraço quando tudo isto terminasse, num resgate dos velhos e bons tempos.
O avanço da doença se deu de forma implacável, um caos na sociedade e na saúde pública. Dentre as inúmeras vítimas fatais em todo o mundo estavam os dois amigos que, além de tudo, faziam parte do considerado grupo de risco maior de contraírem o vírus e as suas consequências infecciosas.
Esses fragmentos escritos foram encontrados entre os pertences dos dois amigos.
E o abraço nunca foi dado.