A EXPLICAÇÃO DE PADRE ERNESTO
O fato daquelas duas senhoras – Marina e Tereza – estarem no adro da Igreja de Nossa Senhora das Dores às cinco e meia da manhã à espera do abrir da porta para a missa das seis, não se deu por ser o primeiro dia de expediente do padre Ernesto.
Não mesmo; há muito tempo assistem às missas matutinas, mesmo quando casadas e com os filhos menores. Agora viúvas, com a prole alhures, uns na própria cidade X, outros nas vizinhanças, têm mais tempo para as missas, que assistem pia e devotamente.
Marina é mais idosa, beira os 75 anos. Sempre com roupa discreta, não raro de todo preta em “permanente respeito ao falecido Emílio”, de quem enviuvou há cerca de 10 anos, é alta e espigada; quem olhar no seu rosto com mais detença sem ser tragado por dois brilhantes olhos pretos sempre espetados no interlocutor, verá um pequeno buço, um nariz aquilino e um queixo saliente. Por natureza é arredia às modernidades, leva uma vida austera, de costumes antigos.
Tereza, dez anos mais jovem, viúva há cinco, é completamente diferente. É baixa, tende à obesidade, tem nariz pequeno e arredondado, no meio de uma cara redonda de olhos miúdos e esverdeados. Bem mais moderna que a amiga e vizinha, está sempre se inteirando das novidades, tem celular e é ativa participante de redes sociais. Nos costumes, porém, severíssima.
Marina reprocha a amiga dizendo que “essas modernidades não têm vez para gente da nossa idade, é coisa de jovem, devemos envelhecer como Deus manda”. Dias atrás, vendo fotos e fofocas nas redes sociais a convite da amiga, mas sem muito interesse, observou:
- Veja o sol, Tereza, ele nasce e morre todo dia, mudando sua cara no transcurso dele, sinal de que o envelhecer é natural.
- Mas o fato de brilhar todos os dias por milhares de anos mostra que ele sempre se renova.
Vejam que num simples diálogo, o mesmo evento – o sol – serviu para justificar duas posições completamente antagônicas, e ainda que completamente ao acaso, explicou os movimentos de rotação e de translação.
-- Ele chegou ontem à cidade. Você viu, Marina?
-- Que jeito? Padre Ernesto chegou tarde, sozinho, e entrou direto na casa paroquial, tão discreto que parecia colado ao muro, a julgar pelo Honório padeiro, que disse ter visto ele chegar, respondeu a amiga, se enrolando mais no xale, que o friozinho da manhã na porta da igreja o exigia.
De fato, por razões que veremos mais adiante, Padre Ernesto, transferido pelo bispo da Paróquia Santa Inês, da cidade de Y, é discreto e reservado por natureza. E as lições de vida aprendidas no ministério aqui e ali, ensinaram-no a ser ainda mais ensimesmado.
Enfim, abriu-se a porta e se deu a missa inaugural com devoção; todos contritos, a começar pelo celebrante, que parecia querer trazer o céu para dentro daquela igrejinha de Nossa Senhora das Dores. Dona Ernestina, a quem não se dá muito crédito porque vê milagres e o sobrenatural em tudo, disse que viu anjos; e desta vez muita gente concordou porque o padre realmente estava inspirado e inspirava.
Embora de estatura elevada, tem fé ainda maior. Cerca de 30 anos, fronte alta ornada por uma mecha de fios brancos destacados da cabeleira preta, olhos vivos, a levar vida e esperança aos fiéis atentos ao sermão, proferido com voz clara e entonada por entre alvos dentes; naquele sermão e nos outros, que assim é Padre Ernesto, por natureza.
Já vimos que é discreto de maneiras, a julgar pelo relato do padeiro. É-o também no vestir. Sempre de clérgima de um branco ofuscante, mostrando a todos que o ministério é permanente e vívido, fato que também não passou despercebido pelo povo, quando dias depois o padre passou defronte ao bar do Inocêncio, por exemplo.
- O Padre novo tem aquela talinha branca no pescoço. Não tira nunca, observou o Sebastião.
- Verdade, concordou o Inácio. Bem diferente do Padre Wesley, que usava calça agarrada e camiseta de banda de rock.
- Dizem que largou a batina, complementou o Décio, com o assentimento de todos, que na verdade sabiam nada.
II
- Corra aqui, Marina, venha ver esta que acabei de puxar no Google..
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Marina correu na medida do possível e lá estavam algumas reportagens de anos passados, contando que o Padre Ernesto respondera a inquéritos administrativo e criminal por assédio sexual.
Ora, era isso que faltava! O bom, piedoso e discreto padre Ernesto envolvido com os pecados do sexto mandamento, justamente ele, que como todos os ordenados sacerdotes fizeram-se eunucos pela própria vontade. Vontade bem esmaecida esta, pensou metade da cidade.
Houve certo rebuliço, o padre ficou sabendo e convocou uma reunião no salão paroquial. Munido de sólidos documentos, tanto episcopais quanto policiais, mostrou que tudo não passara de um engenho, de uma trama muito bem urdida para prejudicá-lo. Mostrou o inquérito policial onde se concluiu que o padre era “completamente inocente e não se fala mais nisso”, com o que o magistrado concordou dizendo “amém”, mandando o feito às urtigas. Mesma conclusão chegou a Cúria.
Então, explicou a todos que ao chegar à paróquia Z tomou ciência de alguns camundongos, mas não os que furtam o queijo, mas o dinheiro que compra o queijo. Como esse animal se reproduz em pencas, logo havia mais camundongo que dinheiro para ser roído. Fez uma devassa, afastou uns tantos, outros tantos se afastaram por conta; mas juraram vingança, pois quem comete o pecado do furto não tarda em cometer o de falso testemunho e nem o de matar pela língua, caluniando; e outros mais do Decálogo que se fizerem mister de acordo com a necessidade.
O grande erro de Padre Ernesto foi ameaçar esses roedores com o fogo do inferno, ao invés de levá-los todos para a Delegacia de Polícia. E o inferno, como se sabe, é algo intangível, etéreo, de outro mundo. Bem diferente da realidade estampada no bigode do delegado de polícia, na cara feia do meirinho e na soberba do juiz.
E como sempre a imprensa só carrega no lado do escândalo, ao invés de mostrar com o mesmo empenho o outro, que normalmente é sem sal, pois no fim das contas o vermelho do sangue (alheio) é bem mais atrativo que o branco da paz.
A explicação foi bem convincente, os fatos estavam ali provados e endossados por autoridades civis e eclesiásticas. Que mais poderiam fazer? Que mais iriam procurar, tendo em vista, além de tudo, a figura imaculada do pároco?
Por enquanto o padre não detectou nenhum rato na nova paróquia. Quem sabe o discurso serviu de aviso a um ou outro que tenha espichado a orelha e entendido o recado. Pelo sim, pelo não, tratou de botar câmera e gravar a secretaria, onde dá expediente com exclusividade; e fez uma visita cordial ao delegado de polícia.
III
A rotina de Dona Marina e Dona Tereza continua inalterada. Por sinal lá estão elas indo à missa novamente, manhã cedinho... Padre Ernesto continua o mesmo, dizem elas, que não obstante olham para ele com um certo ar desconfiado.
E volta e meia leem as notícias de anos passados, suspiram e comentam:
-- Padre Ernesto, quem diria!!