Conto das terças-feiras – Passagem de ano
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, 30 de junho de 2020
Nos últimos anos temos comemorado a passagem do ano em restaurantes, sempre procurando chegar cedo para conseguir lugar, embora com garantia de reserva feita quinze dias antes. Em 2018, com a presença de filhos, genros, nora, netos, dois irmãos e cunhadas, a escolha, por unanimidade, recaiu em um médio restaurante português, em deferência ao genro português, para que ele saboreasse um prato típico de sua terra natal, Bacalhau a Lagareiro, o meu preferido, servido com batatas inteiras cozidas, achatadas ligeiramente com um instrumento leve, e refogadas com tomate, salsinha e sal a gosto. O bacalhau é preparado a partir de lombos do peixe, cortados em postas altas, temperadas e juntadas às batatas, e regadas com bastante azeite de oliva. O conjunto é levado ao forno em assadeira até dourar as postas.
O pedido foi feito, o irmão e cunhada, que não comiam bacalhau pediram outros pratos. Enquanto não éramos servidos, ficamos a tomar vinhos e a beliscar alguns petiscos. O tempo passou, o bacalhau chegou e não vieram os dois outros pratos solicitados. O garçom descuidado esquecera-se de anotar o pedido feito pelo irmão. O dono do restaurante, um português de nome João, bastante pesado, apareceu. Passou uma descompostura no garçom e falou que iria providenciar, saiu em direção à cozinha e não mais voltou.
Ficamos constrangidos pela falta de profissionalismo da casa. Era um restaurante bastante conhecido na cidade e sempre bem frequentado. Pequeno, mas agradável, decoração com fotos e objetos portugueses, bandeira lusitana estendida com orgulho em uma parede frontal à entrada. Um cardápio tipicamente português com seus maravilhosos doces, tendo como carro-chefe o pastelzinho de Belém. A carta de vinho excelente e licores variados, tudo era alegria até o momento em que o garçom veio com os pratos faltantes. Quem escolhera bacalhau já estava terminando de se servir. Todos olhavam para os membros da família que ainda esperavam seus pedidos. A situação era embaraçosa, até se preparavam para ir embora, atitude que foi desaprovada pelo resto do grupo — esperem mais um pouco, dizíamos.
Uma hora e vinte minutos depois, apareceu outro garçom, com dois pratos cobertos, que foram colocados cuidadosamente sobre a mesa, o garçom sumiu sem pedir desculpas. Sorrisos foram vistos nos rostos dos já impacientes clientes. Os olhares de todos miraram os pratos chegados, a expectativa era para saber o que eles haviam pedido, para tanta demora. A mulher foi a primeira a descobrir o seu prato, observou o conteúdo e fez cara feia. Os outros se encolheram em suas cadeiras, o mais próximo ao casal pensou — Será que a comida está tão horrível assim?
O marido aventurou-se a olhar o que o seu prato continha. Não ficou satisfeito com o que viu, franziu o cenho mostrando todo o nojo que sentira. Ele pensou — É passagem de ano e vou comer essa porcaria? Dando continuidade à sua investigação sobre aquilo que estava sobre o seu prato, resolveu mexer o seu conteúdo. Não parecia com nada, isto é, parecia carne, mas crua e pouco temperada. Todos agora estavam de olho nele, esperando uma reação violenta, a esposa chegou mais próximo, tentando ver o que estava desfigurando o rosto do marido. Eu estava tenso, esperando uma reação do irmão, temia falar alguma coisa, já que ele era meu convidado, que insistira para eles estarem ali comemorando dia tão especial com a minha família.
A esposa foi mais corajosa, cortou um pedaço daquilo que parecia ser carne e levou-o à boca, para rapidamente devolvê-lo ao prato, tão rispidamente que chamou a atenção das mesas vizinhas. De pronto exclamou — isso está muito salgado e é nojento! Novamente os vizinhos olharam, procurando entender o que estava se passando.
Não suportando mais aquela situação fui à cozinha falar com o chefe. Quase não me deixaram entrar, forcei a porta. Encontrei o garçom que nos atendera, que tentou se esconder, e me dirigi a ele — Que porcaria é aquela que levaram para a nossa mesa? Sem responder, o homenzinho saiu apressado e foi até à nossa mesa. Olhando para os pratos, colocou a mão na testa, balançou a cabeça de um lado para outro e, nervoso pediu desculpa, tentando recolher os pratos, o que não lhe foi permitido.
Nessa confusão apareceu o gerente do restaurante, um homem gordo, baixo e vestido de branco, mangas compridas. Depois de ouvir o relato do irmão e do garçom, que informara que o outro atendente, um rapaz inexperiente apanhara, inadvertidamente, os pratos destinados à nossa mesa, ainda sem ter ido ao fogão, estava apenas temperado, mas cru.