SOLTEIRÃO CONVICTO
Perto de completar 30 anos, solteirão convicto, de muitas aventuras e de poucos amores, Luiz Bulhões, mais para alto do que para baixo, corpo bem feito à custa de alguma genética e muita malhação em academia, curte o luar que banha a varanda da casa de Américo Torres, numa reunião entre amigos.
Lua lindíssima, pensa ele, se bem que um pouco pálida devido à claridade das luzes da cidade; mas, que paleje um pouco a lua em benefício do conforto que a eletricidade proporciona. Como se vê, é um romântico prático o nosso Luiz.
Nessas cogitações vê entrar Maria Luíza, morena clara, meia altura, metida num vestido amarelo e com uma flor amarela presa à tiara. Não que ele a conheça, absolutamente. Ficou sabendo quem era a mulher depois, encorajado a perguntar porque recebeu uns encorajadores olhares pela noite adentro; ou pelo menos assim imaginou, o que também é um modo de viver, que a imaginação muita vez é o que nos resta.
-- O nome dela é Maria Luiza, disse o dono da casa dias depois. Tem 25 anos e é casada.
-- Casada?
-- Mais ou menos, está se separando ou dando um tempo, como queira. É que o marido a traiu, embora não confesse. Ela não prova, mas tem certeza. E ficaram nesta situação; assim, resolveram separar-se de corpos temporariamente para ver no que dá. Se reatam ou se desatam de vez.
Será pelo efeito da luz da lua, será pelo vestido amarelo, será por tudo isso ou mais, o fato é que Maria Luiza não saiu do pensamento dele por dias a fio. Estaria apaixonado, se fosse possível alguém se apaixonar só por conta de alguns olhares trocados e uma história conjugal um tanto mofina.
Alguns dias depois passava pelo centro da cidade e entrou sem querer num sebo. Sem querer mesmo, a esmo, porque nunca entrara em estabelecimento desta natureza , os pés é que apontaram o caminho ao cérebro; em pouco estava dentro da livraria.
- Oi!
- Oi, respondeu, ao virar-se e dar de cara com nada menos que Maria Luíza. Ele, disfarçando a ansiedade: - nos conhecemos da casa de Américo, não é? Infelizmente não sei seu nome e acho que nem você o meu.
- Maria Luiza, muito prazer.
- Luiz Bulhões, igualmente.
- Que coincidência, disse ela, perguntando em seguida se ele ia sempre a tais lugares.
- Você frequenta? Devolveu a pergunta, rapidamente.
- Sim, sou frequentadora assídua. Não deste aqui, lógico porque não sou daqui, mas de Sorocaba. Estou aqui em casa de amiga passando uns dias.
- Ah, eu também, ajuntou logo Luiz. Gosto deste ambiente. Neste é a primeira vez que venho, mas costumo frequentar, sim. E desviando logo o assunto:
- Então é do interior? Está a passeio?
- Mais ou menos .. .
Essas reticências acompanharam o olhar da moça e junto com ele o de Luiz Bulhões. No ambiente entrava um rapaz magrelo de óculos.
II
- Bom dia, disse ele.
- Bom dia, responderam os outros.
- Luiz, será que vc me dar licença? preciso sair.
- Claro, claro, prazer em vê-la. Será que a gente pode se encontrar novamente?
- Lógico. E deu-lhe o telefone, que rapidamente anotou. E ela saiu com o rapaz magrelo.
No dia seguinte telefonou para Maria Luiza e marcaram um encontro num bar no centro da cidade. Entre um chopp e um salgadinho disse que era casada, mas estavam dando um tempo na relação.
- É mesmo? perguntou Luiz, fingindo desconhecer totalmente o assunto.
Então confirmou o que ele já sabia por outrem: estavam separaram-se por um tempo porque tinha certeza que José Carlos a havia traído. Havia, não, que o assunto era no presente: trai. Mas, como não provava não tinha sentido colocarem um fim na relação, que por sinal ele não queria. O jeito foi conversarem e ele propôs este alvitre, que ela aceitou porque não via outra solução.
- E está arrependida?
- Para ser sincera, até que não. Pode ser interessante olhar a lua por outros ambientes, por outros mares buscar outros portos, outros olhares prá cruzarem com os nossos.
Ao dizer isso olhou para Luiz Bulhões e ele teve certeza pelo brilho do olhar era o porto ao qual ela se referia, sob a mais perfeita lua cheia num céu límpido. Aquele começo de paixão, mera comichão, começou a se tornar realidade. Estava, se não inteiramente apaixonado, caminhando a passos largos para tanto.
-- E você não tem interesse em sair deste casamento? Não pensa em provar o adultério e assim livrar-se de uma vez, judicialmente ou na boa, em cartório?
-- Claro que penso, Luiz. Mas, é praticamente proibitivo o preço cobrado por um investigador particular. Já fui ver isso. Só com a prova robusta da traição eu posso demover o Zé Carlos, turrão que é, da ideia fixa de não me dar a separação. Mas, a prova...
E deixou o assunto no ar. Bendita prova, bendito flagrante que poderia liberar o coração da moça para prender-se ao dele!
E assim os dias foram se passando, os encontros ficavam cada dia mais frequentes. Ele tentava algo mais íntimo, e ela, embora encorajasse com gestos, olhares e palavras, não permitia avanço algum:
- Luiz, Luiz, sou casada, se esquece?
Ele não esquecia e isso era como um rato a roer dia e noite seu amor próprio, seu ego. E se de um lado o amor próprio se ia embora, de outro via aumentar o amor pela morena, um fardo que aumentava a cada dia, ficando difícil de suportar.
III
O fato é que realmente estava apaixonado, mas não via como solucionar a questão. A menos, é claro, a separação. Instando com ela a resposta foi peremptória: não, José Carlos não tinha interesse algum na separação; e haviam combinado darem um tempo. Pois que dessem; combinaram 4 meses e não havia passado sequer dois. Caso encerrado disse ele para ela e ela para Luiz Bulhões, que cada vez ficava mais apaixonado. E mais desesperado por não haver uma solução; ou ele não via.
Que enrascada! Um dia chuvoso e meio friorento encontrou um velho conhecido, que perdera de vista havia muito tempo. Tadeu era o nome dele, e era investigador.
- De polícia?
- Não. Investigador particular. Casos de família, basicamente. Amantes, traições, separações, adultérios, essas coisas.
Pronto, de repente não só havia uma solução como ele a via ali na sua frente , na forma balofa do Tadeu.
- Cara, tenho interesse em seus serviços!
- Passe no meu escritório, e deu-lhe o endereço e o telefone.
Marcaram dia e hora; no combinado estava Luiz defronte ao escritório. Defronte é força de expressão, era uma saleta escura no final de um corredor igualmente escuro, sobre uma pastelaria, por sua vez ladeada de um açougue e uma loja de brinquedos, no centro da cidade.
Para chegar até lá havia uma escadaria de degraus curtos e altos, provida de um corrimão feito com madeira da Arca de Noé. É o que temos para o momento, pensou Luiz quando bateu à porta e foi atendido pelo roliço Tadeu, que logo o convidou a se sentar numa cadeira torta, enquanto ele se sentava à mesa que já tivera melhores dias.
- Não repare o ambiente, não repare na aparente decrepitude, meu amigo. O que manda é o serviço, que é na rua, aqui é apenas um ponto de encontro, de acertamento das coisas. E convenhamos, concluiu de maneira pragmática, a discrição e o despojamento são a alma deste negócio.
- Bem, isso é verdade, concordou Luiz com sinceridade.
- Pois é; toma um café? Passo agorinha mesmo, veja vc que tenho uma máquina ali no canto sobre o banquinho, e café e açúcar naquele armário ali. Realmente dava para ver porque o armário não tinha uma das folhas da porta.
- Não, obrigado, raramente tomo café, respondeu sem sinceridade.
Em pouco tempo de conversa Tadeu era contratado por Luiz para investigar “tudo e mais um pouco”, da vida de José Luiz.
Certo que não ficou nada barato, pelo contrário. Mas, Luiz não era um homem pobre, tinha um bom emprego público e uma boa herança deixada por seus pais. Dinheiro não era necessariamente o problema, problema era conseguir as provas que Maria Luíza tanto queria para ser ver livre e ser enredada novamente, agora por ele. Ademais, Tadeu era o único profissional que conhecia na área, além de ser conhecido antigo.
Resolveu que contaria a notícia a ela, quando a encontrou casualmente no mesmo sebo. O encontro foi casual, é verdade, mas nem tanto, pelo convívio ele sabia quando Maria Luíza costumava passar por lá e então foi só concertar o relógio do destino. O verdadeiro sebo é que ela estava acompanhada do magricela de óculos.
IV
Contou, ela ouviu meio apreensiva, parece que não havia gostado muito da notícia, não pode aferir direito, porém; de qualquer forma o clima mudou quando o magrelo disse meio que casualmente, sem tirar os olhos de um livro que lia, ou fingia ler, quando ele contava a história do Tadeu e sua investigação:
- Ora Maria, que tem de mais?
Pronto; do olhar de Maria Luíza fugiu qualquer sombra, o semblante, se estivera até então um pouco carregado, apreensivo, desanuviou totalmente como num dia de outono.
Ora, pensou nosso amigo Luiz, até que esse magricelo serviu para alguma coisa.
Ficaram por ali mais um tempo, o magrelo de óculos foi-se embora, Maria Luiza disse que logo ia também, mas ficaram ambos ali, a bebericar um café enquanto sorviam as delícias que poderiam advir com uma prova contundente da infidelidade do marido dela.
- Aí, creio eu, podemos avançar o sinal. Podemos namorar firmes. Podemos casar ou morar juntos, olhe vc que coisa que eu digo, logo eu, um solteirão até aqui convicto.
- Ora, por que não? Casar-me novamente não é algo que esteja fora de meus planos. Mas, não se esqueça, precisamos ir muito devagar com o andor, que do mesmo jeito que vc mandou alguém investigar meu marido, quem há de garantir que ele não fez o mesmo, talvez com o mesmo propósito?
Prática a Maria Luíza, pensou logo Luiz. Virtuosamente prática, emendou o pensamento. E quanto a mim, não há dúvida que o luar anda claríssimo em meu favor. Até cogitou em dar algum dinheiro a mais para o Tadeu se a empreitada andasse bem e rápida.
- Pode falar, Luiz?
- Posso, respondeu ele, que mal havia se despedido de Maria Luiza.
- É o seguinte, o negócio enroscou, vou precisar de mais dinheiro.
- Mas está tendo progresso?
- Claro, por que vc acha que preciso de mais algum? Porque a coisa está andando bem e rápida.
Demorou prá pedir mais, pensou ele, logo pensando que valia a pena dar mais uns seis mil reais que o atropelo da paixão lhe ditou; a razão falou mais alto e ele disse logo:
- Três mil a mais você acha que ajuda?
- Ajuda bastante, Luiz. Creio que será suficiente, não sei, não garanto, mas, puxa vida, ajuda e ajuda muito, dá prá resolver umas coisas aqui, reservar vaga num restaurante bacana onde vejo que ele frequenta, e coisa e tal. Valeu, valeu mesmo, obrigado. E desligou, visivelmente satisfeito.
Arrependeu-se Luiz por ter oferecido aquela quantia. Tinha certeza que por dois mil, ou menos, Tadeu ficaria satisfeito. Que seja, se der tudo certo não foi uma dissipação, foi um investimento, pensou .
E a este pensamento logo ajuntou outro, o de que deveria, antes de se empolgar, mesmo após uma boa notícia, questionar mais, querer saber mais e procurar despender sempre menos, isso se ao fim das contas tudo não ficar elas por elas.
De seu lado Tadeu imaginou que foi muito fácil tirar-lhe um “plus”. Não que não se justificasse, é bem verdade, mas não custava nada, em havendo nova ocasião, esticar um pouco mais a corda.
E assim é a vida; nesses desencontros é que surgem os debates e os acordos, e mais comumente, os conflitos.
v
Não houve conflito algum, nem necessidade de qualquer quantia extra. Tadeu foi eficiente e rapidamente trouxe provas cabais da traição de José Carlos. Confrontado com as provas, não teve como continuar com seu jogo dúplice.
No começo ainda tentou discutir, ponderar, mostrar que não era bem assim, mas quanto mais falava mais se enchia de contradições enquanto se enchiam de lágrimas os olhos de Maria Luíza, num misto de raiva e tristeza, que muitas vezes acomete todos os viventes e é difícil saber qual prepondera sobre o outro.
No fim das contas, para evitar um mal maior, um nhenhenhém judicial com seus custos, embargos e petições, acordaram numa separação discreta num cartório de registro civil, sem muitas delongas, que o patrimônio não era grande e filhos nenhuns.
Tudo isso Luiz ficou sabendo pela boca de Maria Luiza, porque é claro que não a acompanhou a Sorocaba na conversa terminativa com José Carlos. Nem se ofereceu e nem teria cabimento tamanho disparate.
- Bem, agora podemos falar de nós, concorda?
- Sim, disse ela, mas concorda também que preciso dar um pequeno tempo? Voltar a Sorocaba, me desligar do emprego do qual tirei férias vencidas, arrumar minha vida, enfim. E neste meio tempo seria importante que a gente evitasse se ver, penso que além de prudente é ético.
Ponderou ele que ela estava coberta de razão. Assim, despediram-se, embora falassem por telefone. A princípio, todo dia, mais de uma vez. Depois, uma vez, se tanto. Não por conta dele, que a paixão se avivava ainda mais na distância, mas sim por conta dela, que a lonjura surtia efeito contrário.
Até que ao cabo de um mês nessa lenga-lenga abriu o Facebook e viu que ela estava “num relacionamento sério”.
Como assim? Relacionamento sério? Aí não teve jeito, tocou rapidamente para Sorocaba após ter ligado para ela e dito, com razão, que merecia explicação por tal aleivosia.
-- Pode vir, disse ela. E deu-lhe o endereço.
Quando chegou ao local, uma praça no centro da cidade, para total espanto de Luiz, lá estavam Maria Luíza e o rapaz magrelo de óculos. De mãos dadas!
- O quê? O que é isso, Maria Luiza?.
- É muito simples, nós – e inclinou meigamente a cabeça para o lado do magricelo – nós nos conhecemos logo depois da festa na casa de Álvaro Torres. E começamos um namoro, ainda que cauteloso porque eu era casada. Queria provas da infidelidade de meu marido para poder me separar, mas nos faltava dinheiro para isso, além de desconhecermos completamente um profissional da área. Aí surgiu você e nos resolveu ambos os problemas, conhecia tanto o investigador como se propôs a pagar pelo serviço.
- E eis-nos aqui, disse o rapaz magrelo, apertando a cintura de Maria Luíza.
Que fazer depois dessa? Difícil dizer caso a caso. No caso de Luiz, ele virou as costas, entrou no carro e tocou de volta para sua cidade. Tomou três resoluções na vida, das quais não se separou jamais: nunca mais se enamorou da lua, evitou completamente qualquer livraria antiga e prestou atenção em qualquer pessoa muito discreta, principalmente se fosse magrela e de óculos.