SORTE É PRA QUEM TEM
Posso dizer que Rubem e Nancy não formavam um casal convencional. Ele, engenheiro mecânico, ela professora de matemática no ensino médio. Casados há 21 anos não tinham filhos e viviam no melhor estilo classe média alta em um protegido condomínio de alto padrão, carros modernos, uma viagem internacional a cada ano, frequência de bons restaurantes, quando possível, e uma poupança razoável que, junto com as aposentadorias esperadas, permitiria a manutenção sem sobressaltos desse padrão até a velhice.
Conheceram-se em uma festa de aniversário da irmã do Rubem. Nancy era colega de faculdade dela e uma das convidadas. Dalí se engatou um romance que entre altos e baixos resultou num casamento meio que tardio com os dois na faixa dos 30 anos. Não tiveram filhos porque não quiseram mesmo. Achavam que filhos atrapalhariam suas vidas – principalmente as tão planejadas e curtidas viagens - e que no futuro até poderiam adotar uma criança. Por enquanto, não! Diziam.
Rubem era um homem de poucas manias, quase nenhum vício e extremamente metódico com as coisas. Cartesiano, no limite. Tinha a mania de corrigir eventuais interlocutores que o chamavam de “Rubens” e costumava ser até grosseiro, dependendo do dia, quando assim o chamavam. Retrucava: - Rubem, com m no final e completava, igual ao cronista Rubem Braga! Sabe quem é? ”. Vício, também tinha um: apostar na loteria, especificamente na mega-sena. E parava por aí. Uma pessoa previsível, honesta e reta.
Desde os primeiros sorteios da mega-sena ele escolheu 8 números para apostar repetidamente: 4, 10, 22, 28, 32, 41, 47 e 57. Cada um com um significado próprio. Aniversário dele, do pai, da mãe, da avó materna que ele adorava, os dois últimos dígitos dos anos de nascimento seu e dos seus pais. Era um vício relativamente barato, custava cerca de 40 dólares por semana. Nos vários anos e após mais de 800 sorteios, Rubem acertou duas vezes a quadra que lhe rendeu algo como 400 dólares. O déficit era grande, mas compensava o retorno em sonhos distantes e quase impossíveis.
Há quase 20 anos Rubem trabalhava para uma empresa petrolífera em uma plataforma de exploração, como se diz no jargão da empresa, “embarcado”, em turnos de 14 por 14 dias. Nas suas ausências pedia a Nancy para fazer as apostas numa casa lotérica pois ainda não era possível fazer as apostas por meio eletrônico, como é hoje. Na plataforma ainda não existiam as facilidades da internet e o contato com terra era feito por rádio em situações emergenciais e através de um boletim informativo diário que a empregadora fazia chegar por clipping até a plataforma. As notícias eram selecionadas de acordo com os assuntos de maior interesse dos embarcados tais como futebol, economia e política.
Naquele 31 de outubro de 2006 as atividades da plataforma corriam normalmente, tudo de acordo com as rígidas normas de conformidade; equipamentos inspecionados, calibrados, como determinavam os manuais. A manhã correu rápida e, após ler alguns resultados da inspeção das bombas, Rubem dirigiu-se ao refeitório para o almoço. Como de hábito pegou o clipping que ficava à disposição na entrada, dobrou e enfiou no bolso. Serviu-se no buffet: uma salada de lagosta de entrada e um fettucine alla matriciana de prato principal; um creme brulée de sobremesa. Nas plataformas comia-se muito bem, talvez para compensar a solidão do trabalho.
Rubem dirigiu-se à salinha contígua ao refeitório onde havia algumas poltronas para repouso e uma máquina de café expresso. Tomou seu café, sentou espreguiçando-se na poltrona e tirou o clipping do bolso. Desinteressadamente começou a ler os títulos das notícias clipadas: “Lula derrota Alckmin do segundo turno e promete manter metas de inflação”; “Dólar fecha a R$ 2,14”; “Flamengo e Vasco viajam para enfrentar adversários fora”; “Vôlei feminino enfrenta o desconhecido Cazaquistão pelo mundial” ... No canto inferior esquerdo do verso uma pequena nota: “Mega-sena: dezenas sorteadas no concurso 811: 10 28 32 41 47 57”. Os números lhe eram bastante familiares mas demorou um pouco para digeri-los. Quase se engasgou ao engolir a saliva. Tornou a conferir os números e aí não teve mais dúvidas. Ganhei! Ganhei! Começou a quase gritar mas conteve a emoção. Decidiu que curtiria em silêncio sua alegria. Voltou ao clipping para ver se havia deixado escapar algum detalhe. Havia. Em letras bem menores no rodapé da notícia uma outra informação: “a Caixa informou que houve um único ganhador, do estado Rio de Janeiro, e valor do prêmio seria de cerca de 20 milhões de dólares”. O coração quase saltou para fora do corpo; as batidas se aceleraram. Respirou fundo e se acalmou. Pensou em pedir uma urgência de saúde e chamar o helicóptero para lhe levar para casa, mas resolveu esperar o regresso programado. Pensou também em contatar a esposa para comemorarem, por rádio, mas não o fez. A essa altura ela nem deveria ter conferido o resultado.
Nos dias seguintes até a volta, Rubem viajou nos pensamentos. Tentou organizar os sonhos e desejos que agora virariam planos. Ele e a mulher pediriam demissão dos empregos; comprariam uma casa na Itália, em Sorrento, no alto de uma falésia com espetacular vista para a o mar Tirreno, no golfo de Napoli, debruçado sobre a Marina Piccoli, onde ficaria a lancha que também sonhava comprar; passeou pelas ruas de Sorrento revivendo o curto tour gastronômico que fizera alguns anos atrás quando foi à região da Campania em busca de documentos que provassem a procedência de seu avô para obter a cidadania italiana, a qual conseguiu logo em seguida. Se enrolou em uma entrevista no Consulado onde o oficial insistia em falar italiano, língua que ele pouco entendia. “Preciso urgentemente aprender italiano” adicionou ao projeto. Planejou também comprar um Alfa Romeo Giulia GT, seu sonho de consumo. Com ele viajaria pelo menos uma vez por mês pela Europa, visitando as cidades que o encantavam, Paris, Barcelona, Londres, Lisboa, além de conhecer outras. Saboreou mentalmente as comidas locais, especialmente a da Trattoria Bagni Delfino, a mais conceituada de lá, especializada em frutos do mar. Deixaria algum dinheiro para os pais dele e da mulher, bem como ajudaria alguns parentes que estivessem em dificuldades financeiras (quase todos!). Mas sobraria muito ainda!
Finalmente, o dia do retorno. A curta viagem de helicóptero durou uma eternidade. Do traslado de Campos, onde chegava, até o Rio não foi diferente. A BR 101 nunca esteve com o trânsito tão lento; só pensava em chegar em casa, correr para a mulher, que àquela altura nem deveria estar sabendo que haviam ganho o prêmio maior da mega-sena. Na manhã seguinte iria até uma agência da Caixa saber dos detalhes para o recebimento do prêmio. Continuava curtindo silenciosamente seu momento de sorte. Estava anoitecendo quando chegou ao apartamento no Jardim Botânico.
Alguns anos antes Nancy estava numa fila quilométrica numa casa lotérica em um shopping em Botafogo, próximo à escola onde lecionava – o prêmio estava acumulado há varias semanas e prometia ser um dos maiores da história da mega-sena - quando despertou para a lógica estatística desses concursos. Desde criança sua curiosidade pelos números aflorava. Ao contrário de suas colegas da escola – que detestavam as aulas de matemática – ela curtia a solução das equações e as demonstrações dos teoremas. Daí até escolher seu futuro acadêmico ninguém tinha dúvida que seria na área de ciências exatas. Licenciatura em matemática foi a escolhida. A fila se movimentava lentamente e com a cabeça nos números começou a fazer mentalmente as contas. “Acertar 6 dezenas em 60, apostando em 8, a probabilidade de ganhar era mínima”. Pegou na bolsa sua calculadora HP e fez a análise combinatória cujo resultado apontava para uma probabilidade de ganho de 1 em mais de 1 milhão e setecentas. E pensou “considerando só os concursos em que eu faço as apostas, metade do que o Rubem gasta por mês, dá uma soma de cerca de mil dólares por ano”. Pensou ainda: “se eu economizar esse dinheiro, a cada 5 anos, teríamos 5 mil dólares para fazermos uma viagem anual extra, talvez não para o hemisfério norte, mas aqui mesmo pela América do Sul; Buenos Aires, com sua vida agitada ou Lima, com sua comida premiada”. A decisão estava tomada! Abandonou a fila e foi embora. Não perderia tempo em fazer aquelas apostas inúteis. Só restava um detalhe: os comprovantes! Não foi difícil convencer o marido que eles ficariam guardados com ela. “Muito mais seguro! ” E deu tanto certo que ele próprio passou a entregar a ela os comprovantes das apostas quando ele as fazia. De vez em quando ela até conferia os resultados – torcendo contra, é claro – pela internet e se convencia que tinha tomado a decisão certa. “Chega de jogar dinheiro fora” repetia para si mesma.
Rubem chegou em casa, dessa vez com um largo sorriso, que não era habitual. Ele era um homem de poucos sorrisos. Abraçou carinhosamente a mulher que estava à mesa da sala corrigindo as provas da terceira unidade de seus alunos. Rubem também não era um homem carinhoso. Explodiu num gesto semelhante à quando o seu time, o Flamengo, fazia um gol. – Nancy, ganhamos na mega-sena! Sozinhos! O prêmio é de mais de 20 milhões de dólares. Você já sabia? Nancy gelou. O sangue pareceu parar de circular. – Vá pegar o comprovante da aposta que amanhã cedo eu vou até a Caixa. Nancy, sem saber bem o que fazer, ainda disse: - Deixa eu terminar de corrigir essas provas e vou pegar; enquanto isso vá tomar um banho. Quando ele saiu do banho não encontrou a Nancy na sala, nem nos quartos, em lugar nenhum.
Nancy, que era considerada uma professora linha dura, deu nota 10 para todas as provas que ainda não tinha corrigido, deixou-as sobre a mesa, e nunca mais foi vista na cidade do Rio de Janeiro.