Sobrepasto
Sobre a mesa estavam ainda os restos do jantar, agora já frio. Um silêncio quase sobrenatural pairava na sala; era como se um tabu não permitisse nenhum som ali; o mundo girava em câmera lenta, as paredes pareciam liquefazer-se em camadas, segundo-à-segundo e sobre o chão estendia-se um carpete de veludo branco recoberto de respingos do sangue carmesim de sua dona – Como podia ser tão descuidada? – Cortara-se com uma faca destinada à ter cortado o pernil e acabou sendo levada, às pressas, para o hospital para que se lhe dessem pontos na mão acidentalmente mutilada – um pouco mais fundo e poderia ter atingido um tendão e ela perderia os movimentos dos dedos.
Mão remendada, retornaram para casa e ela perguntou ao marido:
-Sobremesa?
Ele recusou com um aceno de cabeça, foi a cozinha, guardou a refeição na geladeira – nada não disseram – limpou toda aquela bagunça e foi deitar-se.