O EPICURISTA DO SERTÃO
Introdução – Os personagens
Para contextualizar a narrativa que pretendo fazer, informo que o caso que vou contar aconteceu em meados dos anos 60. O protagonista maior é o Zé Severino mas vou apresentar-lhes também alguns outros personagens que fazem parte dessa história, mas que não têm muita importância não.
O primeiro personagem sou eu próprio, menino deslumbrado com a possibilidade de realizar o sonho de ser jornalista, fui levado para São Paulo onde tinha um tio que trabalhava num grande jornal local. Aos 15 anos eu recebia muitos elogios sobre a qualidade de meus textos. Minha professora de Português era minha grande incentivadora e sempre que surgia uma oportunidade me fazia corar lendo alguma coisa que eu tinha escrito. “Seu estilo é jornalístico! ”, repetia sempre. Daí, a convencer o meu tio a me levar para São Paulo para tentar fazer alguma coisa no jornal foi um pulo. Ele não tinha nada a ver com a redação – era responsável pelo suprimento de papel jornal – mas tinha vários amigos editores. Um deles era o editor do caderno 2, onde o jornal reunia toda a matéria não noticiosa e tinha mais cara de revista. Fomos à redação e após 15 minutos de conversa e de ler alguma coisa que eu tinha levado comigo, ele me entregou uma sinopse do filme “Oito e Meio” de Fellini e ordenou: “Faça um resumo de meia lauda a partir desta sinopse”. Tremi, quando ele me apresentou a uma máquina de escrever Underwood, me deu uma lauda numerada de 1 a 20, onde cada número correspondia a uma linha, e acrescentou: “leia, pense e explique ao leitor do que se trata a história”. Já em pânico olhei para a máquina e pensei em como utilizar aquela coisa que nunca tinha visto de perto. Olhei para os lados onde o pessoal da redação escrevia numa velocidade inimaginável, mas meu interesse maior era ver como colocar o papel. Coloquei-o e, catando milho, ensaiei algumas palavras, sofrendo para ver como se acentuava. Li. Não entendi porra nenhuma. Reli. E mesmo sem entender a história fui pinçando partes do texto, escrevendo com palavras diferentes, e construindo minha obra-prima. Meu tio me abandonou e me deixou sozinho naquela selva. Uma hora e meia depois meu resumo estava pronto. O editor leu rapidamente e me disse: “você começa amanhã! ” E assim comecei minha vida profissional. Naqueles tempos não se exigia diplomas nem idade mínima para isso. As relações de trabalho eram bem mais amenas para os empregadores e eu só fui descobrir que tinha direito a um salário seis meses depois quando meu tio me perguntou: “quanto eles estão te pagando? ” e eu respondi surpreso: “eu ainda tenho direito de receber por fazer alguma coisa que eu adoro? ”. Dia seguinte chegamos juntos ao jornal e ele, me puxando pelo braço, foi até o departamento pessoal e fez aquele escândalo. Rapidamente me levaram a um posto do Ministério do Trabalho onde tirei a minha Carteira de Trabalho do Menor. Estava começando uma carreira, devidamente registrado e remunerado.
Outro personagem desta história é o Samuel, bacharel em direito que preferiu seguir a carreira jornalística ao invés de exercer a advocacia com toda a sua chatice. Samuel era um intelectual, ateu, comunista radical, poeta nas horas vagas e um repórter qualificado para cobrir eventos importantes. Iconoclasta até a alma, tinha ascendência judaica e vivia às turras com a família que impunha a necessidade dele se casar com uma judia. Vivia repetindo: “quer conhecer o inferno? Case com uma judia! ”. Cruzei pela primeira vez com o Samuel em uma reunião clandestina do Partido Comunista em fins de 1964, numa sala mal iluminada nas dependências do jornal, onde todos os presentes fumavam desbragadamente, o que mantinha o ar quase irrespirável e aquela atmosfera conspiratória. Conspirávamos contra o golpe militar e naquele momento o partido decidira apoiar a candidatura do Brigadeiro Fábio Limeira à Prefeitura de São Paulo. Os generais de plantão tinham outro candidato. Nos dias de conspiração, aproveitávamos os finais de noite e dávamos uma esticada até o Unicórnio, o principal puteiro de São Paulo, onde ficamos amigos da Maura, uma respeitada cafetina e dona do estabelecimento. Samuel não fez carreira no jornalismo nem na literatura. Ingressou na luta armada contra os militares e terminou exilado na Europa depois de ser caçado pelo Exército em todo o pais e cassado politicamente pelo AI-5. Pena! Poderia ter sido um grande jornalista ou um poeta respeitado. Até hoje guardo uns versos escritos por ele em papel de maço de cigarro, onde ele homenageava uma das meninas do Unicórnio que diz muito de seu caráter, onde se lê:
“Prostituta! Santa tu és,
Não ficas inerte na redoma
Sabes trocar a frieza do altar
Pela maciez da cama”
O terceiro personagem é o Marcos. Não tem grande importância na história, mas foi o cara que de alguma forma tornou possível o desfecho que o leitor lerá. Marcos era radialista em Piraçai e dividia seu tempo como correspondente do jornal na região.
O último e mais importante personagem é o José Severino. Nascido no sertão da Paraíba, perto de Catolé do Rocha, migrou para São Paulo aos 18 anos, fugindo da seca e da miséria. Com muito sacrifício, esforço e trabalho conseguiu completar o ginásio, com direito à solenidade de formatura no salão paroquial da igreja da Vila Tereza, bairro onde morava com a mãe e duas irmãs; logo em seguida obteve sua carteira de motorista profissional.
Por fim, para compor a moldura da história, preciso falar de Epicuro. Filósofo grego (sec. IV a.C.) foi o criador de uma doutrina em que a busca do prazer é o sentido da vida; cultivar as amizades e ignorar a morte. Um pouco diferente do Hedonismo, onde os prazeres sexuais se sobrepõem. Podemos definir um epicurista como uma pessoa voltada aos prazeres da vida, em alto nível, como sexo e comidas refinadas e amigo de seus amigos.
Composto o elenco, levo o leitor a história que quero contar. No decorrer da narrativa surgirão outros personagens que não me darei ao trabalho de entrar nos detalhes.
Os movimentos pregressos – os fatos
Numa manhã de sexta-feira chega à mesa do chefe de reportagem do jornal um telex do correspondente em Piraçaí relatando um duplo homicídio ocorrido na noite anterior em sua cidade. Dizia que a filha do prefeito e seu amante teriam sido assassinados em um quarto de hotel na cidade vizinha. O principal suspeito era o marido e que estava foragido. A cidade vivia um clima de tristeza pois tanto a filha do prefeito quanto ele próprio eram pessoas muito queridas. Cidão, o chefe da reportagem, chamou o Samuel e com a experiência de mais de 30 anos, de foca à editor, explicou: “temos aqui uma matéria que pode render uma bela reportagem; quero que você vá pra Piraçaí e volte domingo com o assunto completamente dissecado; entreviste todos que se relacionavam com a esposa, invada sua vida conjugal até onde der, fale com pessoas que possam dar informações sobre a motivação do assassino; não esqueça nem os colegas de escola; já pautei pra segunda-feira e vou lhe dar uma página inteira; leve alguém com você pois acho que o nosso homem lá não vai ter muito a lhe ajudar; peça um carro e motorista pra ficar lá com você. Feito?”
O Samuel foi até a saleta onde ficavam os focas, me chamou de lado, contou a história que tinha ouvido e propôs: “quer ir comigo? a gente volta domingo”; Titubeei um pouco pois tinha uma programação muito interessante para o final de semana mas resolvi acompanhar meu amigo. Ligamos para o Setor de Transportes e o Samuel pediu o carro. Alguns minutos depois o solícito colega retornou a ligação: ”peguem o 108; o motorista é o Zé Severino e ele já está lá”.
O Zé era meu velho conhecido. Tinha sempre um caso pra contar. Desde as aventuras juvenis no sertão da Paraíba até as recentes conquistas amorosas. Antes de virar repórter fui plantonista do Aeroporto de Congonhas que ficava na periferia de São Paulo e, na maioria das vezes, era ele quem ia me apanhar para voltar para a redação. Nessa convivência tive a oportunidade de conhecê-lo e admirá-lo. Dirigia com maestria e não tinha pudores em cometer todas as infrações de trânsito possíveis, até manobras arriscadas que me faziam tremer. Talvez o prestigio do jornal impedisse as multas! Dizia que não tinha medo da morte e que na terra dele a vida não valia muita coisa. Quando conseguiu um emprego estável, como auxiliar de almoxarifado de uma montadora, mandou buscar a namorada que havia deixado por lá e casou. Em 3 anos e poucos meses teve 4 filhos. Na própria montadora ascendeu à posição de motorista do Departamento de Compras e com uma remuneração maior pode comprar um terreno na Vila Tereza onde começou a construir sua casa que com o tempo foi ganhando anexos para acomodar os familiares que iam chegando da Paraíba. O Zé dizia: “meus prazeres na vida são comer – comida e mulé - e dirigir”. Pelo que observei durante nossa convivência foi que ele não era muito exigente com a qualidade da comida e das mulheres. Gostava de comer muito, prato transbordando, e cantava todas as mulheres que o cercavam, feias ou muito feias. No volante não tinha o menor receio e ficava puto da vida quando alguém o ultrapassava. O carro com o logotipo do jornal lhe dava uma espécie de salvo-conduto. Naquele período eu estudava filosofia, como matéria opcional na faculdade, fiquei conhecendo algumas doutrinas filosóficas, e não tive dúvida em rotular o Zé como “Epicurista do Sertão”. Vivia por conta de seus prazeres! Era um cara feliz!
Chegamos à garagem e o Zé, sempre com um imenso sorriso atrás do vasto bigode e posicionado ao volante do 108 – uma Ford cabine dupla com o logo do jornal e pintada em letras garrafais, Reportagem - nos recebeu.
Nos acomodamos no conforto da cabine dupla e pegamos a estrada para Piraçaí. Pouco mais de 300 quilômetros de viagem. Já passava de meio dia e combinamos fazer uma parada para almoçar no meio do caminho. Duas horas de estrada e quando paramos na Churrascaria Boi Gaúcho nós já sabíamos dos muitos casos do Zé. Só ele falava! Sem nenhuma censura foi desfilando suas aventuras sexuais enquanto pisava fundo no acelerador. “Sabe aquela faxineira do 3º andar, a Dona Cícera? Comi ontem! ”. Mas Zé, acho que ela tem mais de 60 anos, você encarou? Falei. “Cabra, você nem imagina; ela tem a cara gasta mas tem umas coxas lisinhas, de menina”. Nesse intervalo suas conquistas e peripécias foram sendo objeto de nossas gostosas gargalhadas. Funcionárias do jornal, vizinhas do bairro, colegas do supletivo e até uma cunhada se renderam a sua fúria carnal.
Até aqui o leitor já sabe detalhes de dois dos prazeres do Zé: dirigir em velocidade de piloto de Fórmula 1 e traçar qualquer mulher que aparecesse a sua frente. O terceiro estávamos prestes a ser apresentados: comida. Na churrascaria ele se afundou nas picanhas e cupins que eram servidos sem restrições. Na época não existiam os hoje populares comidas por quilo. Se fosse pesado o que ele comeu diria que passaria fácil dos dois quilos.
Carro e estômagos reabastecidos, lá fomos nós no rumo de Piraçaí, não sem antes ouvirmos outras histórias de mulheres comidas e comidas degustadas, com destaque para o guisado de bode, que ninguém preparava melhor do que sua avó, e dona Lucinha, proprietária do único bordel decente de Catolé do Rocha, que o iniciou nas travessuras da cama.
Piraçaí – onde tudo aconteceu (ou poderia ter acontecido)
No final da tarde chegamos ao destino. Fomos ao Grande Hotel Piraçaí, onde nos hospedamos. Ligamos para o Marcos, nosso correspondente, que rapidamente foi ao nosso encontro. O Zé se recolheu ao seu quarto e o Samuel e eu ficamos colhendo informações sobre o duplo homicídio. Marcamos para tomar o café da manhã as 7 horas onde nos encontraríamos para sair cedo para a batalha. Avisamos ao Zé que ele poderia pedir uma refeição no quarto, se sentisse fome, o que tínhamos certeza que ia acontecer.
Detalhes escabrosos foram revelados pelo Marcos. Aparentemente o homicida era homossexual e matou por ciúme. Ciúme do amante da mulher, que era também seu namorado. Prato cheio para uma matéria para a edição de segunda-feira, normalmente vazia dos assuntos mais interessantes - política e economia - onde reinavam os editores de esportes e de polícia. Fizemos o roteiro para as entrevistas que pretendíamos fazer durante o sábado: o prefeito – pai da moça assassinada - as mães, das vítimas, o delegado da polícia local, parentes próximos, colegas e amigos, incluindo uma curta viagem para a cidade vizinha de Garça, onde moravam os pais do namorado do filho do prefeito e de sua mulher. Duplo amante!
Sob grande comoção os enterros haviam ocorrido naquele mesmo dia. O homicida continuava foragido e fazia parte de nosso escopo investigar alguma pista dele. Também pedimos ao Marcos que providenciasse um fotógrafo local para nos acompanhar e que tentasse agendar as entrevistas que fossem possíveis. E a noite acabou! Nos despedimos do Marcos marcando um encontro as 8 horas do sábado e pedindo-lhe para agendar as entrevistas possíveis.
Ao esvaziar o copo da última Brahma tivemos a diabólica ideia de pregar uma peça no Zé. “Vamos inventar que o Marcos mandou umas meninas para nos fazer companhia, incluindo a dele, e vamos dizer que a que foi mandada para ele tinha ido para o quarto errado” foi a trama engendrada pelo Samuel. E fomos dormir.
A trama – o que interessa
7 horas do sábado. Ao chegar ao salão do café o Zé já estava traçando um prato cheiro de ovos mexidos, com salsichas e bacon, e uma variedade de pães e bolos. O Samuel chegou logo em seguida. E aí é que começa a história que quero contar:
- Oi Zé! Como foi a noite? Perguntou o Samuel
- Comi alguma coisa e fui dormir
- E a menina que mandamos para você?
- Que menina?
Expliquei que o Marcos tinha mandado 3 garotas de programa para nos fazer companhia e que eu escolhi uma pra ele do jeito que ele gostava: loirinha, gordinha.
- Vocês estão caçoando de mim!
- Claro que não! Depois que você subiu o Marcos perguntou se a gente queria companhia e respondemos que sim e que ele mandasse uma pra você também.
- Quando chegaram, mandamos a loirinha para o seu quarto, o 407. Como ela não voltou achei que vocês tinham se ajeitado.
- Que quarto 407? Eu estou no 417!
- Porra Zé, aí então algum hóspede que está lá pegou sua mulher! Poxa, era do tipo que você disse que gosta, toda branquinha, peitões, olhos claros – acho que verdes – e devia ter a xoxota coberta por um pentelho de pelos finos e loirinhos.
A expressão dele era de incredulidade, de raiva.
- Puta que pariu! Um cabungo qualquer comeu minha mulher! Fela da puta!
- Que pena Zé! E pelas reações dele nós fomos construindo todas as fantasias imagináveis. O Samuel jura que viu algumas lágrimas rolarem de seus olhos.
- Eu mato esse fela da puta! Vou lá agora!
Deixou o café da manhã pela metade e saiu do salão bradando por vingança. A gente não sabia se havia algum hóspede no 407 e fomos rapidamente atrás dele. Havia. Só deu tempo de puxá-lo da porta aberta e salvar o coitado de uma surra olímpica. Ainda vimos ele esmurrá-lo extravasando toda a sua ira.
- Tome fela da puta! Pensa que vai comer a mulé dos outros e ficar por isso mesmo?
Separamos os dois e pedimos desculpas ao cara do 407 que, àquela altura, ameaçava chamar a polícia e reclamar do hotel. Conseguimos acalmá-lo explicando que o agressor era uma ótima pessoa e que aquele destempero foi por conta de uma briga que ele teve com uma mulher. Ânimos serenados, voltamos ao salão, onde o Zé tranquilamente terminou seu desjejum com o apetite redobrado. Na viagem de retorno ele falava o tempo todo do episódio e do arrependimento de não ter quebrado a cara do infeliz.
Nossa história termina aqui. Para o leitor que ficou curioso sobre o duplo homicídio de Piraçaí prometo contar todos os passos da reportagem numa outra ocasião. A matéria, cheia de detalhes, foi publicada na edição de segunda-feira do jornal com grande repercussão.