A DOAÇÃO

Nesses tempos de pandemia a vida corria morna na cidade. As pessoas confinadas em suas casas aguardando por uma sinalização das autoridades para voltarem as suas rotinas diárias; esposas e mães no limite da tolerância com maridos e filhos, o dia todo enchendo o saco dentro de casa. As TVs reprisando o que podia, desde novelas que fizeram sucesso no passado a jogos de futebol em que Zico e Sócrates faziam a bola ficar mais redonda. Os noticiários se resumiam a descer o cacete no presidente e a mostrar os números da pandemia. Nada de amigos e parentes. Os lap e os desk tops mantinham uma janela aberta para o mundo. As pessoas já não suportavam tanto isolamento e viviam às turras umas com as outras, aguardando o que estava por vir.

Não era o caso da Navinda. Bacharela em Direito, graduada pela Faculdade João Fragoso, uma dessas escolas obscuras e pouco ambiciosas, de mensalidades e professores baratos, que se instalaram nos subúrbios da cidade e que não preparavam muito bem seus alunos, fato comprovado pelo terceiro ano consecutivo após a conclusão do curso que ela ainda não tinha conseguido a aprovação no exame da ordem dos advogados. Com a nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio insuficiente para ingressar numa universidade pública, mesmo com a possibilidade de entrar pela cota destinada a pessoas de sua cor, conseguiu matricular-se com ajuda do FIES, com financiamento das anuidades para serem pagas – ou não – no final do curso.

Navinda, 25 anos, era uma dessas mulatas bonitas que se destacam em nossas cidades. No passado até concorreu ao título de Miss Verão e ficou em segundo lugar. Nunca teve sorte no amor e só se envolveu com pessoas que não estavam a sua altura, até que conheceu o Neco, sua grande paixão na vida. O Neco voltará a esta narrativa mais à frente. Navinda começou a trabalhar aos 13 anos, ajudando o pai na barraca de frutas na feira, de onde saia todo o sustento da família. Tinha um único irmão que não ajudava em nada e que nunca quis estudar; ainda teve o azar de engravidar uma menina de 13 anos com quem teve de se casar apressadamente pura fugir de uma ocorrência policial que os pais da garota queriam registrar.

Entre bananas e melancias Navinda chegou aos 18 anos, concluiu o segundo grau e até aí ajudava o pai no atendimento aos clientes e na empírica contabilidade do negócio. Seu trabalho agregava pouco à renda familiar. Além da renda do pai, Seo Tonho, D. Téia, sua mãe, contribuía com o ganho familiar com suas diárias como faxineira em casas de família, duas ou três vezes por semana. Foi naquela época que Navinda resolveu deixar as tarefas na barraca do pai para sair em busca de um emprego fixo. Logo na primeira entrevista, competindo com mais de dez candidatos, conseguiu uma vaga de vendedora em uma loja de calçados num dos shoppings da cidade. Sua experiência como vendedora na barraca pôde ter ajudado na escolha, mas o que pesou mesmo foi o interesse de Seo Abílio, dono da loja, em sua bela estampa. Durante os 90 dias do contrato de experiência resistiu olimpicamente às cantadas de Seo Abílio e, finda a experiência, caiu fora daquele assédio infernal. Voltou ao mercado e conseguiu uma vaga de caixa em uma rede de supermercados que estava inaugurando uma loja próxima a sua casa. Foi levando a vida entre os bips da máquina registradora e o curso noturno na faculdade.

Concluído o curso foi em busca de uma oportunidade num escritório de advocacia. Achava que antes de poder advogar ganharia experiência na área. Foi admitida como assistente em um pequeno escritório de um advogado trabalhista, Dr. Napoleão, que dividia uma sala com o filho, também advogado, que nunca aparecia por lá. Rapidamente foi conquistando a confiança do chefe e em pouco tempo sua presença era mandatória para o dia-a-dia do escritório. Era a paralegal perfeita. Cuidava do atendimento a eventuais clientes, telefone, redigia petições iniciais, na base do copy & paste para as ações que se repetiam, de reclamações de horas extras, excesso de jornada, demissão injustificada e por aí afora, até a limpeza das salas, pequenas compras e a ajudar o Dr. Napoleão com mentiras tipo “ele está em audiência” ou “está atendendo cliente” quando sua esposa o procurava durante suas fugas extraconjugais. Foi nesse estágio da vida e do escritório que conheceu Neco.

Neco tinha ido ao escritório, recomendado por um amigo, para consultar o Dr. Napoleão sobre a possibilidade de cobrar na justiça alguns meses de salários atrasados do Capivara Futebol Clube, time que disputava a terceira divisão do campeonato local e que acabara de perder o direito de participar do próximo no ano seguinte por ficar na lanterna da competição. A equipe foi desmantelada e os atletas ficaram sem receber os salários.

Neco, boleiro desde pequeno, se destacou nos campos de futebol por sua capacidade de finalização ao gol adversário, sempre presente na área, lembrando o estilo Romário, de quem era fã. Aos 11 anos foi levado para uma peneira em um time grande e brilhou na oportunidade que teve, marcando dois gols – um em grande estilo, de bicicleta – e foi imediatamente selecionado para compor a divisão de base do clube. Nas divisões de base foi um ídolo e tratado pela alta direção como um diamante bruto que estava sendo lapidado. Com 15 anos assinou um pré-contrato que garantia ao clube um enorme valor no caso de ser negociado para outra equipe além de receber boas luvas e um salário bem razoável. Com o dinheiro das luvas comprou uma casa para seus pais e seis irmãos e com o salário mensal pôde alugar um apartamento em bairro de classe média. Comprou um carro do ano, que um irmão mais velho que foi morar com ele, dirigia.

Seu sucesso só crescia! As marias-chuteiras o assediavam o tempo todo e na festa de seu aniversário de 16 anos até atriz de televisão apareceu. Uma cantora de axé music chegou a engatar um romance, que foi bombardeado por D. Téia, sua mãe, e pela diretoria do clube, por ela ter o dobro da idade dele. A torcida exigia sua presença na equipe principal que disputava a primeira divisão e estava muito mal das pernas. E assim o Neco ganhou a camisa 11 do time e fez seu primeiro jogo, fora de casa, contra o campeão do ano anterior e fez o único gol da equipe. Festa no aeroporto na sua chegada, aumento de salário, mais marias-chuteiras no seu encalço e outras grandes atuações até o fatídico dia em que sofreu um acidente que o impossibilitou de continuar jogando o futebol de dribles rápidos e chutes colocados sem muita força fora do alcance dos goleiros; numa entrada criminosa um zagueiro de uma equipe adversária dividiu uma bola que era mais do Neco, atingindo-o lateralmente com muita violência, fraturando a tíbia e fíbula em vários lugares, além de romper o menisco. Saiu do estádio em prantos por conta da dor insuportável e foi direto para um hospital. Passou por renomados ortopedistas no país e até no exterior e nada pode ser feito. Jamais voltaria a ter agilidade com a perna esquerda. Estava alijado do futebol, sua carreira havia acabado. Neco ainda aproveitou sua grande habilidade jogando em equipes menores, no limite de sua resistência à dor que o acompanhava apesar das doses cavalares de analgésicos e saia de campo, substituído durante os jogos, até chegar ao Capivara Futebol Clube. O sucesso, o dinheiro, a fama e as mulheres desapareceram. Viveu algum tempo do resultado da venda do que tinha. Só restou a casa onde morava a família, o pai, a mãe e os irmãos, que haviam se acostumado mal com o sucesso do Neco e viviam basicamente as suas custas. O pai, outrora líder sindical - diretor do sindicato dos estivadores – passou a viver nos corredores do poder em busca de uma oportunidade de trabalho junto a seus antigos companheiros; a mãe tentava ganhar algum dinheiro vendendo algum artesanato que alguns parentes produziam; alguns irmãos deixaram o conforto de casa e foram à luta em outros lugares. Um deles foi para Portugal onde virou motorista de Uber e, de todos, era o que estava melhor na vida.

Nesse clima, Navinda e Neco se encontraram. Durante a entrevista uma chama se acendeu e ambos sentiram que a relação deles poderia ir além da entrevista. E assim aconteceu. Viveram um turbilhão de emoções. Definitivamente apaixonados, o Neco sugeriu irem morar juntos na casa dele, ideia que foi liminarmente rejeitada por sua mãe embora seu pai visse com simpatia; na casa dela? Aí foi Navinda que nem cogitou falar com D. Téia. E foram vivendo o romance, cada um em sua casa, Neco procurando emprego sem achar nada em que, pelo menos, ganhasse um salário mínimo. Dirigentes do clube, ex-dirigentes, torcedores fãs do Neco no passado, procurados, ninguém se dignou dar uma oportunidade de trabalho. Pensavam que ele só sabia jogar futebol!

No auge da depressão Neco fala pela internet com o irmão em Portugal, que sugere que ele tente ir para lá, onde as oportunidades poderiam ser melhores. O próprio irmão se vangloriava de ter chegado lá com 200 Euros no bolso e hoje desfrutava de uma vida decente com a mulher e os filhos. “Só tem que trabalhar muito”, enfatizava. “Se você precisar de dinheiro para vir me fale que eu te empresto”. Tentação! Neco foi! Com o assentimento da Navinda, combinaram que falariam pelo Skype todos os dias. E que depois que as coisas se ajeitassem ela iria para lá ou ele voltaria. E assim aconteceu! Lágrimas de despedida no aeroporto e já decorridos 8 meses de separação. Neco conseguiu depois de empregos menores uma posição de motorista de Uber, assim como o irmão. Ficou morando com ele, dormindo no sofá da sala, trabalhando 12 horas por dia e sua alegria era poder falar com Navinda todo final de noite. E falavam dos planos para o futuro, das possibilidades de cada um, das dificuldades financeiras – principalmente agora quando o Seo Tonho foi obrigado a fechar a barraca por conta da pandemia e D. Téia ser dispensada das faxinas pelas patroas assustadas com a propagação da Covid-19. E repetiam que um não podia viver sem o outro e que se amavam insuportavelmente. Até faziam sexo virtual na calada da noite quando não havia ninguém por perto.

Voltando aos dias atuais, onde deixamos Navinda no escritório do Dr. Napoleão, eis que ela está lá sozinha torcendo para chegar algum cliente, quando entra na recepção um senhor muito simpático, simplório, não muito bem vestido, barba por fazer e lhe diz:

- Moça, eu estou procurando o Doutor para me fazer um servicinho.

- Que serviço?

- É o seguinte: eu trabalhava com o Seo Hans em uma dessas missão de igreja por muito tempo lá em São Raimundo Nonato, no sul do Piauí, na fronteira com a Bahia. Ele tinha muita confiança em mim e antes de morrer – ele já estava bem velhinho – me entregou esse pacote e me pediu para procurar alguém de confiança para entregar ele para um tal Padre Alemão; deixou esse bilhete aqui, mas eu não sei ler muito bem.

- Deixe eu ver o bilhete

- Está aqui. Aí tem o nome do Padre e o endereço do Asilo.

Navinda leu o bilhete: Favor entregar esta encomenda para o Padre Wolfgang, no Asilo Santa Fé, fica no bairro da Liberdade, mas eu não tenho o nome da rua. Não deve ser difícil de achar pois todo mundo conhece o “Padre Alemão”. Tem aí 200 mil euros para ajudar na manutenção do asilo. Peço que sejam retirados 20 mil euros para o portador, Seo Agenor, em retribuição aos serviços que ele sempre me prestou, além do suficiente para pagar os custos com a entrega. Obrigado. Fique com Deus! Hans Muller – Missão Alemã para o Parque Nacional da Serra da Capivara

Navinda sentiu um calafrio por todo seu corpo. Intuiu que ali estava sua libertação. Pensou que se pegasse uma parte do dinheiro para ela ninguém iria perceber. Ainda desconfiada, pediu para ver o pacote. Era um embrulho em papel de jornal, todo amarrado com fita adesiva. Com o pacote em cima de sua mesa e com muita discrição, rasgou com a unha a parte do papel que não estava coberta com a fita adesiva. Os olhos brilharam! Viu uma nota de 100 Euros. Pensou que se tirasse uns 20 mil pra ela também não estaria fazendo nada errado. E voltou ao Seo Agenor:

- Tudo certo Senhor; o bilhete diz que é pra entregar pro senhor uma parte do dinheiro que está aí. O Asilo eu sei onde fica e posso entregar lá o pacote. Posso abrir para tirar a sua parte?

-Moça, é o seguinte. Esse dinheiro estrangeiro aí não vai servir de nada pra mim; a senhora pode dar a minha parte no nosso dinheiro?

Um ciclone se formou na cabeça da Navinda. Ela não tinha mais que 50 reais na carteira. Se ela esperasse o Dr Napoleão chegar e conseguisse o dinheiro ele é quem iria dar o golpe no Seo Agenor. Nessas horas o diabo aparece e dá a solução. Navinda lembrou que ela movimentava a conta do escritório na agência do banco que ficava logo abaixo no prédio. Viu no computador que a conta tinha um saldo de pouco mais de 20 mil reais. Consultou no próprio site do banco a cotação do euro: R$ 6,05, o que daria um pouco mais de 120 mil reais. “Será que se eu der 20 mil reais ele vai reclamar? ” Pensou.

- Seo Agenor, no bilhete ele manda dar 20 mil para o senhor. Só que eu não tenho esse dinheiro aqui. O senhor pode ir comigo até o banco para pegar?

- Vou sim senhora.

Navinda desceu o elevador com Seo Agenor, a cabeça a mil por hora. Esperta, fazendo contas. Só do Seo Agenor eu estou ficando com 100 mil reais; vou pegar mais 20 mil euros do pacote, o que dá mais 120 mil reais. Fico com 220 mil reais. Nada mal! Entraram na agência do banco e sacou os vinte mil, não sem antes tomar um esporro do gerente por ter sacado em dinheiro aquele valor. “Tem que avisar antes; sua sorte é que com essa pandemia pouco gente tem sacado dinheiro”.

Toda feliz! – Pronto Seo Agenor, missão cumprida. Está aqui o seu dinheiro.

Seo Agenor, também todo feliz, separou o dinheiro em vários nacos, enfiou nos bolsos e se despediu. Navinda subiu para o escritório transbordando de alegria. Colocou o pacote numa gaveta à salvo do Dr. Napoleão e começou a pensar em como e onde trocar os euros. Em pagar todas as dívidas, suas e da família, do cheque especial até o FIES, contas de luz, água, IPTU, o armazém da esquina que ainda vendia fiado, e outras menos importantes; de repente o diabo reaparece: por que não pegar um pouco mais? Ninguém vai saber! Se eu pegar mais 60 mil, 300 mil reais, quem vai desconfiar? Entrego 100 mil Euros para o Asilo, que é uma ajuda muito boa, e fico com mais de meio milhão de reais. Por que não? “Amanhã cedo corro para vender uns 5 mil euros para cobrir a conta do escritório e pronto”. E lembrou de uma expressão em latim que um septuagenário professor de direito penal sempre repetia: alea jacta est! (a sorte está lançada). Sua excitação aumentava a medida que a noite se aproximava. Não via a hora de contar sua peripécia para o Neco. Dizer que poderiam fazer o que quisessem, realizar todos os projetos. Enfim, se casarem de verdade na igreja.

Deu 11 horas da noite, duas da madrugada em Portugal, e nada do Skype sinalizar. A cada 5 minutos ela olhava para a tela do computador e nada. Sem conseguir segurar a ansiedade resolveu falar por telefone com o irmão do Neco, que atendeu e foi logo dizendo:

- Navinda, não tenho uma boa notícia para te dar. O Neco foi levar um passageiro até Caldas da Rainha e na volta o carro dele capotou; está chovendo muito por aqui! Infelizmente ele não resistiu aos ferimentos e faleceu. Ainda não falei nada para os meus pais, você fala? Diga para eles ....

Ela nem ouviu o fim da conversa. Desabou num choro sentido e mergulhou numa depressão de dar dó; só desejava morrer também. Foi para a cama e não teve nem coragem de ligar para os pais do Neco. Certamente não dormiu e só pensava em duas coisas: cobrir o saldo da conta no banco e em como seria o funeral do Neco. Ela até poderia ir para Portugal ou pagar o traslado do corpo. Enfim, iria respeitar a vontade da família.

Levantou da cama sem ânimo para nada mas sabia que tinha que correr para o escritório para tapar o buraco que tinha deixado no banco. E assim fez. Naquela manhã pediu até um Uber. Agora podia! Como o Dr. Napoleão só costumava chegar ao escritório próximo a hora do almoço, teria tempo para pegar os 5 mil euros que pretendia vender rapidamente e pensar o que fazer com o resto. Foi pegar o pacote no armário onde o havia deixado e com alguma volúpia começou a cortar a fita adesiva e rasgar as folhas de jornal que escondia aquele tesouro.

O pacote tinha quatro notas de 100 euros, grosseiramente falsificadas em copiadora, cobrindo cada um dos quatro maços amarrados com elásticos e o resto era papel cortado no tamanho das cédulas.

NEYSILVA
Enviado por NEYSILVA em 28/06/2020
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