A SEMENTE

Rodrigo observou o rapaz abestalhado que estava sentado na calçada. Um misto de ódio e repulsa o invadiu de repente, porém, eram sentimentos indefinidos: não sabia se o queria morto, ou apenas longe dali. Sua presença o incomodava demais, disso tinha certeza. O olhar vazio do rapaz invadia com freqüência seus sonhos, desde aquele dia em que sua irmã entrara em casa, chorando, desesperada. Acontecera há dois anos, mas parecia ter sido ontem: Leandra com o vestido rasgado, marcas vermelhas pelo corpo muito branco – acabava de ser violentada por “aquele débil mental”. Na verdade, o ato não havia sido consumado, os exames comprovaram depois – mas o que este “detalhe” importava? As notícias eram que Abelardo, o “maluco”, tinha molestado Leandra. “Estuprado”, “arrombado”, “desvirginado”, “comido” - todos estes eram termos que passavam de boca em boca nas conversas dos moradores do bairro. Os pais de Abelardo, os que mais sofreram com o episódio, trataram de enviá-lo para Niterói, à casa de uns tios - temiam que a vizinhança, motivada pela emoção do momento, linchasse-o. Durante algum tempo eles não conseguiram sair de casa, choravam dia e noite. Apegaram-se mais ainda à fé em Cristo, e passaram a freqüentar diariamente a igreja evangélica do bairro. A dor do casal comovia Rodrigo, mas guardava estes sentimentos consigo. Na rebeldia dos seus dezenove anos, não conseguia olhá-los nos olhos, e jamais respondeu a um aceno daquela sofrida senhora. Era orgulhoso e prepotente.

Não acreditou quando soube que Abelardo voltaria a morar no bairro. Pensou em matá-lo assim que o visse frente a frente, mas sua própria irmã o demoveu da idéia. Aos poucos ele procurou esquecer o acontecimento, mas bastou avistar o rapaz ali, tão próximo, sentado como um velho aposentado a admirar os carros passando pela rua, que seu corpo voltou a tremer como naquele dia tão amargo. Suava, nervoso, não conseguia articular os pensamentos. Não lembrava sequer o motivo de ter saído à rua. Comprar o jornal, pensou. Não, era o pão. Pão e leite, era isso. Dirigiu-se à padaria da esquina. Sentiu calor, apesar do dia nublado e da chuva que se anunciava, com os ventos que sopravam cada vez com maior intensidade. Era uma tarde cinzenta aquela...

Comprou pães e leite, e voltou pelo mesmo caminho, torcendo para que Abelardo não estivesse mais ali. Até caminhou mais devagar, parando às vezes, para respirar fundo. O rapaz, no entanto, permanecia no mesmo lugar, sentado, com a mesma expressão vazia. Rodrigo passou bem perto dele, fitou-o com ódio, por um breve instante pensou em agredi-lo com pontapés. Sentado como estava, não teria tempo para reagir. Abelardo era grande, quase gordo, e tinha vinte e seis anos. Nascera com um problema cerebral grave. A família consumiu muitos recursos na tentativa de reverter sua situação, mas nada foi possível. Ele não falava, emitia alguns grunhidos, apenas entendidos por sua mãe. Gostava de pintar, e passava a maior parte do tempo a desenhar mulheres em folhas de papel que ganhava dos pais.

Bastaria Rodrigo lhe aplicar alguns chutes, violentos, suficientes para arrancar-lhe sangue do rosto. Vê-lo caído no chão, talvez trouxesse algum prazer, pensou. Faltou coragem, algo assim... Foi para casa, cabisbaixo, o corpo molhado de suor. Leandra, quando o viu entrando, não precisou perguntar o que acontecera: já tinha visto Abelardo da janela. Ao contrário de Rodrigo, não sentiu nada ao avistar seu algoz. Ficou pensativa, olhando para a televisão desligada. Jamais sentiu confiança em nenhuma de suas amigas do colégio, não se sentia à vontade para conversar sobre aquele acontecimento com ninguém. Leandra tinha treze anos à época. E sua verdade era uma só: sentiu uma pontinha de prazer quando Abelardo a puxou para dentro daquele terreno baldio ao lado da vila em que moravam. Fazia frio neste dia, pouquíssimas pessoas na rua. Era neste local que os garotos costumavam descobrir os prazeres carnais antes do tempo: uma das conversas mais comuns entre a vizinhança era sobre uma garota, filha de mãe solteira, que costumava pular o muro do terreno, sempre acompanhada de dois ou três garotos. Falavam muito também sobre um tal de Toninho, um jovem homossexual, que com freqüência era visto saltando de dentro do terreno. Era certo que em alguns minutos surgiriam lá de dentro garotos com olhares desconfiados, pulando para a calçada, ajeitando o short. Com o tempo, alguém interessado em facilitar a vida de todos aqueles amantes abriu um buraco no muro, não muito grande, o suficiente para passar uma pessoa. Foi por esta abertura improvisada que Abelardo conduziu Leandra. E lá aplicou-lhe uma seqüência desesperada de beijos lambuzados, molhados. Rasgou-lhe o vestido, arrancou-lhe a calcinha. A garota não gritou, não ofereceu resistência. Mas Abelardo, em sua ânsia sexual acumulada, começou a ter espasmos antes mesmo de penetrá-la, e foi agachando-se no chão. Leandra observava sem entender o que se passava com seu estuprador. Achou melhor sair dali, pois seu medo cresceu além da curiosidade. E sobre esta curiosidade, jamais falou com alguém.

Não foi apenas Abelardo quem voltou a morar na vila naquele mês de junho. Lorrane, uma jovem de 16 anos, estava retornando de uma estadia em São Paulo, após quatro anos longe do bairro. Soube pelos pais do acontecimento envolvendo Leandra, mas não lamentou a sorte da colega. Lorrane partira para São Paulo com os planos de uma carreira como modelo. As coisas não deram certo. Alguns cursos e álbuns que não renderam o resultado esperado foram o suficiente para que a família forçasse o seu retorno. Era o fim do sonho. Algumas pessoas ligadas ao mundo da fotografia achavam que Lorrane tinha um ar não sensual, necessário à carreira, mas sexual. Seu olhar era sexual, seu jeito de falar exalava sexo. Em São Paulo teve muitos contatos com fotógrafos e outras pessoas do meio, mas seu comportamento não inspirava confiança a ninguém. Aos quinze anos já teria dividido sua cama com no mínimo uma dúzia de parceiros. E agora voltava para o bairro suburbano que odiava, onde em seus sonhos todos os vizinhos a observavam descendo de um carro importado, com as melhores roupas de griffe que uma modelo famosa tinha o direito de vestir. Assim como os pais de Abelardo choraram, Lorrane chorou. O choro dos derrotados, diante do sonho adolescente interrompido.

A princípio Rodrigo não reconheceu Lorrane, quando a viu caminhando pela vila. Não podia ser aquela menina magrinha e branquela, que se dizia apaixonada por ele há alguns anos. O jeito de se vestir era o mesmo, roupas justas e provocantes, e o olhar com que o cumprimentou era aquele mesmo de anos atrás. Só que agora a diferença era gritante: à sua frente não estava mais uma garotinha esmirrada, mas uma ninfa que não ficava devendo nada às beldades da televisão. Como poderia Lorrane ter ficado tão linda? Apesar dela não ter lhe dado muita atenção, o simples aceno com a cabeça foi suficiente para perturbá-lo tanto quanto a expressão vazia de Abelardo. Passou o resto da tarde pensando em seus sorriso frio, quase indiferente. Pensou no seu shortinho branco e justo, destacando a calcinha minúscula por baixo. Pensou nos seios soltos sob a blusa fina, pontudos e volumosos - Lorrane nunca usava sutiã. Rodrigo começava a se arrepender do modo como a tratou há exatos quatro anos. Desprezou suas cartas e bilhetes, não deu atenção à música que ela lhe ofereceu naquela festa junina de rua. Lembrava do seu corpinho magro, pouco desenvolvido se comparado ao das outras meninas com as quais saía - Débora, Aline, Fernanda, Alessandra - todas maravilhosas. Mas a verdade é que o tempo havia passado e Lorrane estava colocando todas elas no chinelo. Não havia mais nenhum motivo para aquelas jovens caçoarem dela, da sua paixão pelo rapaz mais bonito do bairro. Se Rodrigo antes a desprezara pelo seu corpo, a partir desta tarde não conseguiria mais pensar em outra garota. Sonhou beijando-lhe os seios, a nuca e aqueles lábios grossos, quase depravados.

A aparição de Lorrane contribui para que Rodrigo deixasse de pensar tanto em Abelardo. Vez ou outra pensava em armar uma tocaia, à noite, para atacá-lo. Eram os colegas adolescentes que lhe cobravam uma atitude – “como podia deixar esta história barato?” “Os pais de Abelardo estavam fazendo um desafio aberto”, “era provocação”, “ele vai tentar pegar ela de novo, cara”... Aquelas frases ecoavam entre as paredes de seu quarto, e Rodrigo ficava com os olhos marejados. Lágrimas de ódio e da sua covardia. Passou a fumar maconha com mais freqüência.

Certa tarde, surpreendeu-se ao encontrar Lorrane na varanda de sua casa, conversando com Leandra. As duas nunca foram amigas, pouco se falavam. Mas isso não importava agora, mas sim o sorriso que Lorrane exibiu ao cumprimentá-lo. Rodrigo ficou sem graça, não parecia nada com o rapaz que já transara com a maior parte das garotas do bairro, e que já contabilizava um histórico de quatro abortos, todos pagos por seu pai. Lorrane parecia gentil, mostrou inúmeros álbuns de fotos tiradas em São Paulo. Presenteou Leandra com um perfume francês e um par de brincos. Eram presentes dados por um de seus amantes paulistas que ela queria esquecer. A irmã de Rodrigo adorou o perfume, logo experimentou os brincos. As duas passaram o resto do dia conversando, depois se despediram, combinando passeios para o fim de semana. Lorrane deixara os álbuns para que a colega olhasse depois “com calma”, e desse sua opinião. Percebendo o interesse do irmão nos álbuns, Leandra resolveu deixá-los com ele. Não tinha intenção de vê-los mais vezes, apenas aceitou a idéia para não desagradar àquela “modelo frustrada”. Sentiu um pouco de inveja das formas perfeitas da colega, foi isso. Rodrigo apreciou fascinado cada foto daqueles álbuns. A garota aparecia em todas as posições imagináveis, ora recatada, ora despudorada. O jovem não fez mais nada naquele dia: trancou-se no quarto com os álbuns e masturbou-se inúmeras vezes. Adormeceu abraçado a uma foto da garota saboreando um pirulito. No dia seguinte tinha apenas uma certeza: faria tudo para conquistar (ou reconquistar) Lorrane.

A foto dada a Rodrigo com uma dedicatória foi a deixa para que ele se descobrisse completamente apaixonado. As palavras eram intrigantes: “Para Rodrigo, de alguém que te amou muito. Nunca despreze um amor, para ele não se transformar em ódio.” Leandra a entregou ao irmão com uma fisionomia alegre, parecia feliz em perceber que ambos podiam tornar-se namorados. Com o passar dos dias sua amizade com Lorrane parecia só aumentar, e as duas passaram a ser unha e carne. Lorrane cada vez mais se insinuava a Rodrigo, sem jamais deixá-lo aproximar-se muito. As tentativas de beijos mais quentes eram abortadas no início, um abraço mais forte não era de forma nenhuma retribuído. E esta situação estava atormentando o rapaz, que não entendia o porque da garota sempre evitar um contato mais íntimo, apesar de insinuar-se tanto. Para complicar ainda mais os sentimentos de Rodrigo, Lorrane conversava horas e horas com sua irmã, que depois lhe contava tudo: a amiga se dizia ainda apaixonada por ele, mas tinha medo de se decepcionar, de apenas ser usada. Sabia da fama de Rodrigo como namorado infiel, que não conseguia ficar apenas com uma companheira. As palavras da irmã o transtornaram, passou a quase implorar o amor de Lorrane. E nesta situação prosseguiu, às vezes chegando a humilhar-se diante de outros jovens: em público, Lorrane fazia questão de não lhe dar muita atenção; quando a sós, procurava falhar-lhe sempre segurando-o, olhando-o nos olhos.

Beijaram-se na boca numa tarde de domingo. Um beijo longo, na varanda de sua casa. Leandra neste momento estava no banho. Logo depois as duas saíram e aquele domingo passou a ser o dia mais feliz para Rodrigo. Pulou pela vila como uma criança, gritando, diante dos vizinhos que o olhavam sem entender sua alegria. À noite Leandra chegou com uma pequena caixa, um presente da amiga para Rodrigo. Ela havia pedido que ele só a abrisse quando estivesse sozinho. Afoito, no seu quarto, abriu a caixa e apanhou de dentro uma calcinha, branca, de renda, muito pequena. Um pequeno bilhete dizia: “Eu estava usando esta calcinha agora à tarde. Queria te dar um presente mas não tinha idéia do que comprar. Fui ao banheiro e tirei ela pra você. Espero que goste. Um beijo, Lorrane.”

Rodrigo telefonou toda a noite para Lorrane, mas a resposta era sempre a mesma: ela tinha saído. Saído para onde?, se Leandra já chegara. As duas não saíram juntas? Sua irmã estaria lhe escondendo alguma coisa? Ela teria ficado com algum cara no shopping? Estaria num hotel? Rodrigo se viu completamente desesperado, caminhou pelas ruas por um tempo, depois chorou sozinho no quarto, agarrado à calcinha. Não conseguiu dormir nesta noite.

Naquela segunda-feira à tarde os pais de Abelardo passaram de mãos dadas por Lorrane. Não a cumprimentaram. A garota diminuiu o ritmo dos passos até o casal dobrar a esquina e tomar o caminho da igreja. Em seguida tocou a campainha da casa de Abelardo. Ele estava sozinho e abriu a porta, curioso, sem entender o motivo daquela visita. Com as mãos sinalizou que os pais haviam saído. Lorrane riu e mostrou o que trazia para Abelardo: algumas revistas pornográficas. Entraram e sentaram-se no sofá, em silêncio. O rapaz, com um olhar desconfiado, sorria ingênuo, como se ganhasse um presente muito valioso. Lorrane, com um vestido branco muito curto, começou a folhear as revistas, apontando as fotos mais depravadas a Abelardo. Em poucos minutos ele já estava excitado, levantando-se para em seguida sentar-se, inúmeras vezes. A garota se divertia com a situação, e após aplicar um beijo no rapaz, abraçou-o e apertou o crescente volume que ele trazia no meio das pernas. Ela masturbou Abelardo ali mesmo, na sala, e quando percebeu que o orgasmo dele estava chegando, levantou-se e foi embora, correndo pela rua da vila. Parava de vez em quando apenas para rir.

Nesta semana, todos os dias foram de chuva. Chovia também naquela manhã em que Lorrane chamou Leandra por três vezes no portão de sua casa. Rodrigo saltou da cama quando reconheceu aquela voz. Olhou-se no espelho para verificar uma possível remela, ajeitou os cabelos e foi ao portão. Estava sozinho, e agora, feliz como nunca esteve desde o dia em que ganhou aquela calcinha branca de presente. Lorrane estava vestida com uma calça de cotton azul e um casaco de lã preto. Linda. Entrou e beijou Rodrigo na boca. Abraçaram-se demoradamente e ao saber que a amiga não se encontrava, entregou-se ao jovem apaixonado. Fizeram amor de forma violenta, no chão da casa. Nada nem ninguém iria atrapalhá-los, e assim passaram o dia e a tarde se amando em todas as posições possíveis. Rodrigo quase chorou tamanha era sua felicidade. Chegando a noite Lorrane saiu, iria em sua casa, mas voltaria em seguida. Também estava apaixonada, disse. “E agora mais do que nunca”. Da rua, deu um telefonema e se dirigiu à casa de Abelardo mais uma vez. Na varanda, retirou da carteira um papelote de cocaína, aspirou e depois bateu de leve na porta, uma, duas vezes. O rapaz, sorriu ao reconhecê-la, e com gestos fez sinal para que entrasse. Seus pais estavam na igreja naquela hora, como em todos os outro dias. Lorrane despiu-se rapidamente e se atirou nos braços de Abelardo, cobrindo-lhe de beijos. Ao contrário de Rodrigo, ele não possuía nenhuma experiência, a não ser desejo. E este, ao ser posto em prática, resvalava na violência: Abelardo a mordeu no pescoço, nos braços, e penetrou-a com dificuldade. Arfava como um animal. Teve um gozo também violento, e em seguida caiu para o lado, suando e respirando fundo. Lorrane levantou-se e mais uma vez desceu a vila correndo, nua, cobrindo-se com seu casaco. Devido à chuva as casas estavam com portas e janelas fechadas, sendo que ninguém pôde assistir tal cena. A jovem gritou por Rodrigo do portão, que não acreditou no que viu, parecia a repetição de um pesadelo. O seu pior pesadelo. Ao ouvir as palavras de sua amada, e o nome de “Abelardo”, não pensou duas vezes no que fazer. Correu pela vila munido de uma faca. A chuva agora estava mais forte, e o rapaz escorregou duas vezes antes de alcançar a casa do algoz de sua irmã e da mulher que ele agora amava mais do que tudo no mundo. Saltou o muro e apenas empurrou a porta, que se mantinha encostada. Perdeu a conta de quantas facadas deu no peito de Abelardo. Chutou o corpo do falecido e cuspiu em seu rosto sujo de sangue. Arrependeu-se por não tê-lo matado antes. Amaldiçoou-se por sua execrável covardia, e teve desejo de morrer.

Ficou sem entender quando se viu cercado por um grupo de policiais armados. Como puderam chegar tão rápido? Não reagiu. A vizinhança toda agora saía para assistir aos seus passos rumo à viatura policial. De longe avistou Lorrane debaixo de um guarda-chuva. Ela vestia outras roupas, estava de banho tomado. E por debaixo das mãos, sorria. A todos que lhe perguntaram, respondeu não saber o que estava acontecendo. Mais tarde, trancada em seu quarto, sorriu, e depois se masturbou. Nunca esteve tão feliz

Ângela Sipolatti
Enviado por Ângela Sipolatti em 17/10/2007
Código do texto: T697959
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