1146-A LINDA PROFESSORA-

Existe em minha mente um arquivo de memórias que insiste em abrir com constância, proporcionando-me momentos de doces recordações.

É o arquivo classificado como “DONA MAROCAS”.

Já escrevi contos sobre a minha inesquecível mestra do curso primário, quando frequentei o Grupo Escolar Campos do Amaral.

Já contei e recontei aos parentes e amigos a sua e minha história, ou seja, a nossa relação de mestra e aluno durante aqueles quatro anos.

Já lá se vão mais de setenta anos, e a imagem daquela gentil e dedicada mestra só faz se fixar cada vez mais na minha mente.

Foi com certo sentimento de temor que adentrei, com meus colegas, pela primeira vez, na sala de aula do primeiro ano. Como eu era o segundo menor da turma (o menor-menor mesmo era o Miltinho, que eu já conhecia e que no decorrer do curso seria apelidado de “mosquitinho elétrico”), a bela senhora que estava à porta da sala, nos esperando, foi indicando a primeira mesinha para sentar-me, juntamente com três outros que chegaram a seguir.

Estávamos todos meio que desconfiados, meio que intimidados. Sentamos-nos nas pequenas cadeiras ao redor de mesinhas: quatro alunos em cada mesa.

Os pequenos, como eu e o Mosquitinho Elétrico, os de tamanho médio e as meninas ajeitamo-nos nas pequenas cadeiras. Mas os alunos mais desenvolvidos (e havia duas meninas bem altas) não se sentiam bem à vontade; enfim, acabaram por colocar as longas pernas por baixo das mesinhas e ficamos aguardando.

Ninguém conhecia ninguém, ninguém falava nada. Todos muito sérios.

A linda senhora que estava na porta entrou na sala e foi para a mesa ao lado do quadro negro. Senti seu perfume delicioso.

Na minha candura pensava que ela era a diretora, pois as professoras (meu preconceito) eram idosas, gordas e temíveis.

Ela disse, sorrindo:

— Boa tarde, meus queridos amiguinhos e amiguinhas.

Ninguém respondeu.

— Boa tarde, queridos! Vamos, respondam, quero ouvir vocês.

Respondemos num coro tímido:

— Boa tarde!

— Ótimo. Sou a professora de vocês neste primeiro ano. Meu nome é Maria, e todos podem me chamar de Dona Marocas.

Fiquei extasiado!

Puxa vida, aquela senhora tão linda ia ser a nossa professora! –

Dona de uma simpatia que me cativou “de primeira”, transmitia aos alunos segurança, confiança e era admirada por todos.

Sabia ensinar, pois o fazia com carinhoso. Fomos aprendendo com facilidade o alfabeto, as palavras, formando as frases; a tabuada era fácil de ser decorada, e tudo funcionou muito bem no nosso primeiro ano. Não houve alunos repetentes e no segundo ano lá estávamos todos nós, menos a Cecília de Azevedo, que era de Cássia e a família retornara à cidade natal.

No segundo ano, os alunos sentavam-se em carteiras, de dois a dois. Meninos com meninos, meninas com meninas: as fileiras de carteiras também separadas por sexo.

Meu companheiro de carteira era, de novo, o Milton, o Mosquitinho Elétrico. Eu tive diversos apelidos, entre os quais “ovinho de tico-tico” (devido ás sardas no rosto) ou “pirú”, devido à cor intensamente vermelha de minha face, principalmente quando ficava envergonhado ou nervoso, ou por outra causa qualquer que mexia com meu emocional.

Nós dois sentávamo-nos na primeira carteira, bem próximo à mesa da professora e ao quadro negro. Continuávamos sendo os menores da classe, o que aconteceu durante todo o curso primário.

A professora...ah! que alegria! Continuava sendo Dona Marocas, cada vez mais bonita e mais perfumada.

Os alunos já podiam frequentar a biblioteca infantil do grupo, e então, me esbaldei. Sempre gostei de ler e a oferta de tantos livros para leitura me deixava até sem saber o que escolher. Já tinha uns livros em casa: “Aventuras do Aviãozinho Vermelho”, de Érico Veríssimo; “Admirável Mundo Novo”, de um autor americano e que, na realidade, só li mais tarde; “Ursão”, uma história infantil de terror : “Dom Quixote para Crianças”, de Monteiro Lobato, e alguns exemplares do “Tico-Tico”, única revista infantil da época.

Dona Marocas orientava-nos quando, uma vez por semana, íamos à biblioteca. Quando falei que tinha o Dom Quixote, ela me pediu para contar alguma passagem do livro.

Vermelho como um pimentão, falei para ela e para os colegas alguma coisa do livro, nem me lembro bem, mas fui elogiado por ela e aplaudido pelos colegas. Foi minha primeira “apresentação” para um publico reunido.

Terceiro ano: continuamos recebendo os ensinamentos e o carinho de Dona Marocas. Eu estava mais familiarizado com os colegas e com a linda mestra.

E fui navegando nas ondas da escola. No mês de abril foi organizado o “Clube de Leitura”, que funcionava nas classes de terceiro e quarto anos. Houve uma “eleição”, cada aluno levantando a mão para escolher seu candidato e presidente do clube. É claro que a eleição foi direcionada e acabei sendo “eleito” o presidente.

Escolhemos o nome para o Clube de Leitura: Monteiro Lobato, desta vez com minha participação ativa. Agi como cabo eleitoral de Monteiro Lobato que já conhecia pelos livros infantis. O Clube tinha reuniões mensais, sempre na última quinta-feira do mês. Era um clube literário, isto é, nós, os alunos, declamávamos poesia, líamos textos interessantes dos livros infantis e coisas que tais.

Um colega chamado Licurgo gostava de histórias engraçadas. Doma Marocas pedia-lhe que contasse para ela, antes, reservadamente, pois suas histórias nada mais eram que piadas não muito inocentes. As histórias tinham que receber uma censura prévia.

Um pequeno jornal de quatro páginas pequenas, impresso na gráfica Jobormoura, dava notícia das atividades do Clube. Eu gostava muito de convidar a presidente de outro clube, a Erce Bícego, inteligente e muito bonitinha.

Havia mensalmente uma reunião de todos os alunos, professores e funcionários da escola. Era chamado de “Auditório“ e cada professora se esforçava para apresentar o melhor de seus alunos em performances de canto, dança, música, leitura de um texto de interesse geral, declamações de poesia, e outras coisas que os alunos podiam apresentar.

Em uma apresentação musical no segundo semestre, eu aparecia vestido como marinheiro, numa roupa feita por mamãe e acompanhado por meninas em trajes de havaianas.

Eu entrava no palco dando uma corridinha, e as meninas atrás de mim, formando um semicírculo.

Eu cantava: Minha História vou contar.

As meninas Se for de arrepiar, nem é bom falar.

Eu: Minha história é sobre o mar.

As meninas – Então Pode começar.

E seguia-se toda uma narrativa cantada em versinhos simples, das viagens do marinheiro pelo mundo afora.

Foi um sucesso absoluto!

Quarto ano. Agora, já estávamos plenamente à vontade. Minha veneração pela Dona Marocas acho que empatava com a do Luiz Ferreira, que também gostava muito dela. Garoto com onze anos, um pouco de malícia no olhar, via o mundo um pouco diferente. As meninas estavam crescidinhas e ficavam mais bonitinhas, e os garotos “mexiam” com elas. Nada de ofensivo, tudo numa candura sem malicias.

Dona Marocas parecia ainda mais bonita: ela era magra, altura média, elegante e usava sempre vestidos que destacavam as formas do corpo, sem exageros, O rosto era redondo, e a cabeça parecia protegida por um coroa, que eram seus cabelos usados com o penteado “permanente”. Perfumada. Ai!

No intervalo do recreio, as salas ficavam vazias, todos iam para o pateio ou para a grande sala onde era servida a sopa escolar.

Ela, contudo, não saia; uma das serventes trazia um prato de sopa, que ela, delicadamente, sentada com aprumo, tomava em colheradas vagarosas. As pernas bem torneadas e os pés cruzados – tão naturalmente e tão ... charmosa!

Uma artista de cinema, isto sim, eu pensava.

No segundo semestre da quarta série, tudo foi focado na formatura. Fui “escolhido” por Dona Marocas para ser o orador da turma. A princípio fiquei mais temeroso do que orgulhoso da tarefa.

Mas ela cuidou de tudo: fui à sua casa diversas vezes, nas tardes quentes de outubro, para a redação do discurso, e treinamento. Ela me ensinou como ficar de pé ao proferir o discurso, como ler sem ficar com os olhos grudados no papel, e coisas assim.

Era com um grande respeito que entrava em sua casa, que era como qualquer outra, acho que tinha até mobília feita por meu pai. Mas o respeito que eu tinha (eu era muito tímido) era grande.

A tarde da formatura no Cine São Sebastião deveria ser, pra mim, inesquecível. Mas não sei se fui bem como orador, não me lembro da cerimônia recebendo o diploma, tudo ficou um alvoroço na minha cabeça.

Só me lembro, sim com muita nitidez de detalhes, de Dona Marocas, com um vestido rodado, florido discretamente, a cintura bem fina e o busto elevado.

Meus olhos vidrados, fixos nela, não viram mais nada.

Depois daquela tarde de formatura, nunca mais vi Dona Marocas. Fui envolvido pelo curso de admissão ao ginásio, depois pelo próprio curso ginasial e nem cogitei de visitá-la ou vê-la, ainda que por momentos, clara ou furtivamente.

Nunca mais tive notícias dela...

E ela é hoje, a imagem querida e linda no Panteão de meus Mestres Espirituais.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 5 de março de 2020.

Conto # 1146 da Série INFINITAS HISTÓRIAS.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 15/06/2020
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