ALMA LIVRE.

As sandálias de couro pisaram de novo a calçada de pedras portuguesas da velha estação rodoviária. Jerônimo deixou cair uma lágrima. Regressava a terra natal após exatos trinta anos. Trazia na mala, além das roupas da 25 de março, muitas saudades e os cabelos brancos. Respirou profundamente. Queria sentir o cheiro da cidade e relembrar o passado. O cheiro característico de pastel e de acarajé. Um forte aroma de eucalipto, vindo do balde da faxineira que limpava o chão da rodoviária, invadiu suas narinas. Esperava encontrar os trinta guichês de venda de passagens lotados de gente, como eram na sua infância. Viu apenas seis deles abertos. Um movimento fraco de pessoas. Tudo mudado. -"QUANDO SOMOS CRIANÇAS TUDO PARECE TÃO GRANDE!!!!" Resolveu visitar o mercado. Um prédio antigo, ao lado na mesma quadra. Lá estava a banca de flores de dona Amália, agora cuidada pela neta. A banca de temperos de seu Solano. Sem cominho, s orégano e sem o velho Solano. O rapaz que cuidava da banca era desconhecido. Ele desconhecia seu Solano. Algumas lojas fechadas. A banca de tapioca de dona de dona Helena. -"EITA.... ATÉ SALIVEI." Jerônimo pediu uma tapioca com carne seca. Achou o preço salgado demais. Dez reais. Descobriu que a moça era filha de dona Helena. Uma mordida bastou para descobrir que ela não herdara os dons culinários da mãe. -"MAINHA AINDA É VIVA." Jerônimo se despediu. Uma lixeira. Pecado jogar fora comida. Um cachorro matusquelo. -"TOME, AMIGO. UMA PSEUDO TAPIOCA PARA VOCÊ!!!!!" O cão comeu só a carne. -" BICHO ESPERTO!!!!" Não era o mesmo mercado de antes. O lugar era frequentado pelo menino Jerônimo e sua turma. Quatro garotos da rua Aranha Ribeiro: o Jerônimo, o Flavinho, o Mosquito e o Diego. Eles ajudavam os comerciantes. Carregavam caixas de frutas e legumes por alguns trocados. Jerônimo comprava sorvetes. O pai era sapateiro. A mãe era lavadeira de roupas. O negrinho Jejê tinha quatro irmãos. Ganhou sei primeiro sapato aos doze anos. O tio Eurípedes não queria que o afilhado recebesse a primeira comunhão descalço. Café da manhã era angu. Leite só aos domingos. Brinquedos feitos de latas de óleo vazias. O barraco de chão de terra batida. Um fogão a lenha. Um pilão. Galinhas no terreiro. Cuscuz nas refeições. -"A SUA BÊNÇÃO, PAINHO." Um barraco. Um lar de carinho, respeito e solidariedade. O barulho dos sapos a noite. O rio poluído que cortava o bairro. Dava pra ver a lua pelo buraco do telhado de zinco. Uma briga de bar. Tiros. O pai dele morreu jovem. A vida ficou mais difícil. Bolinha de gude. Jejê era bom. No futebol era perna de pau. Gostava de ir pra Olinda ver o Bumba meu boi. Os batuques e berimbaus. Quando chovia o barraco alagava. As famílias eram acolhidas no ginásio de esportes da prefeitura. Jejê se divertia. Foi a primeira vez que comeu salsichas. Achou muito bom dormir numa colchonete na quadra de esportes. Se arriscou ao fazer surfe ferroviário com a turma. Idéia besta do Flavinho, mais velho e líder da turma. Jejê foi só dois anos a escola. Gostava mais da merenda que das aulas. Quando vinha circo no bairro, a turma vendia pirulitos em troca do ingresso. Flavinho acabou fugindo com o circo, cansado das surras e da vida miserável que levava. A mãe de Jerônimo começou a trabalhar numa casa de gente rica. Faxineira de uniforme azul e branco. Ela pode realizar seu sonho de promover uma festa junina na rua. Jejê, agora líder da turma, ficou encarregado do pau de sebo. O Mosquito roubou óleo diesel do caminhão de seu Malaquias. O pau de sebo ficou escorregadio e fedido. Ninguém conseguiu subir e pegar o prêmio de cinco cruzeiros. A vizinhança colaborou com os quitutes. Tudo gostoso exceto pela paçoca de dona Judite que quebrou o dente do Mosquito. Era natal. A turma foi ver a inauguração do primeiro shopping center da região. -"AQUELE É O FAMOSO PAPAI NOEL?!?!!? VAI MORRER DE CALOR DEBAIXO DAQUELE VELUDO VERMELHO!!!!" Jerônimo tinha roupa nova quando tinha eleição na cidade. Ganhava camiseta com foto e número de candidatos a vereador. Pernas e braços com sinais de machucados. Era divertido roubar goiabas na fazenda da Gruta. O Mosquito trouxe uma garrafa de cachaça. No vagão de trem abandonado o primeiro porre de Jejê. Bêbado, começou a inventar cordéis e poesias. Dançava maracatu. Afrânio era o novo membro da turma. Foi admitido por ter letra e irmã bonita. Nereide era o nome da moça. A primeira paixão de Jejê. Por ela deixou as bolinhas de gude e até tomava um banho por dia. Colou no Afrânio e o cercava de mimos. No aniversário do Afrânio a decepção ao ver o Mosquito beijando a Nereide. Jejê deixou a turma. Jejê queria andar sozinho. Foi sozinho ao cinema da rua Topázio. Foi sozinho a gafieira da Leopoldina. Foi sozinho procurar emprego no cais do porto. Ganhou músculos ao ajudar os estivadores. Ganhou seu primeiro salário e deu um fogão a gás usado pra mãe. Sentiu orgulho danado ao ver a alegria dela. Sentimento bom de fazer o bem. Prometeu a mãe que a levaria pra conhecer o Rio de Janeiro. A meningite levou sua irmã mais velha. Jejê, com dezessete anos, se revoltou e passou a frequentar o terreiro de pai Dito. Alí conheceu doutores, engenheiros e poetas. A mãe tinha um belo sorriso, de orelha a orelha. Jerônimo descobriu que ela estava namorando o irmão da patroa. Um homem vinte anos mais velho. -" EUCLIDES VAI NOS TIRAR DAQUI. VAMOS PRA CASA DELE EM PITANGUEIRAS!!!!" Jerônimo se opôs. Resolveu ir morar numa pensão. Nunca mais falou com a mãe. Na pensão, Jerônimo conheceu Etelvina. Um romance breve e o primeiro filho. -"FILHO NÃO ME PRENDE. SOU LIVRE. HOJE É ETELVINA, AMANHÃ SERÁ CATARINA OU REGINA. UM AMOR, UM FILHO EM CADA ESQUINA!!!!" O rapaz boa pinta, de sorriso fácil e voz de veludo ganhou logo a confiança dos diretores do porto. Arrumaram pra ele uma vaga de ajudante de cozinha num navio cruzeiro. Jejê conheceu o Caribe, toda a costa brasileira, africana e européia. Arranhava um espanhol, francês e inglês. Uma década no mar até enjoar. Comprou uma casinha pra Etelvina e o filho. -"NÃO REGISTREI MAS NÃO VOU DEIXAR MORAR NA RUA!!!!" Foi pra Salvador. Montou um quiosque na praia. Frutos do mar, especialidade da casa. Oito anos alí. Um romance e um filho com Lippe, uma haitiana. As rodas de capoeira. O curso de karatê. Jerônimo deu o quiosque a Lippe. Resolveu ir trabalhar em São Paulo. Duas décadas na terra da garoa. Servente de pedreiro, pintor, armador. Trabalha sorrindo, cantando e recitando poesias. -"TEM TEMPO RUIM, NÃO. ESTOU EM PAZ PERMANENTE E CONSCIENTE COMIGO MESMO!!!!" Doze anos depois. Telefonema do tio. A mãe morrera chamando por ele. Mais experiente, admitiu que fizera uma bobagem. Não foi ao velório. Tinha vontade de visitar o túmulo dela. Ligou e pediu ajuda a Cida. Uma ligação as margens do rio. Nenhuma resposta. Ele resolveu tomar uma cachaça n bar. Cida retornou a ligação. Jerônimo ficou quatro dias na casa dela. Um quintal cheinho de pés de manga, sapoti e seriguela. Viravam a noite conversando. Um mungunzá. Uma cerveja com salame. Cida foi com ele ao cemitério. -"NÃO VAI VER SEUS IRMÃOS, JEJÊ????" Há tempos não era chamado assim. Ele olhou para a sepultura da mãe. -" NASCEMOS NO MESMO TETO APENAS. SE NÃO ME PROCURARAM NESSE TEMPO TODO É PORQUÊ MINHA INÚTIL PRESENÇA NÃO É IMPORTANTE!!!! PORQUÊ OS DEVO PROCURAR?!??" Ela o levou a rodoviária. -"A GENTE PODE SE ESQUECER DE BOA PARTE DA INFÂNCIA MAS DO SABOR DAS FRUTAS JAMAIS!!! MUITO OBRIGADO, MINHA IRMÃ DO CORAÇÃO!!!!" Eles se abraçaram. -"NA VIDA NÃO BASTA ESCOLHER UM BOM CAMINHO. É PRECISO ESCOLHER BEM OS COMPANHEIROS DE VIAGEM!!!" Ele entrou no ônibus. Poltrona 26. -" ESTOU VOLTANDO PRA SÃO PAULO. TEM MUITA OBRA ME ESPERANDO!!!!!" Alguém deixara um Livro no assento. Lendas brasileiras, de Câmara Cascudo. -"QUE MASSA, VELHO. MELHOR COMPANHIA NA VIAGEM!!!!" Duas horas depois. Uma parada. Uma moça sentou do lado dele. Ela não tirava os olhos do livro. -ESSE LIVRO NÃO É MEU. ESTOU QUASE TERMINANDO E ELE SERÁ SEU, SE QUISER!!!!" A moça sorriu. -"SÉRIO?!?! AMO ESSE AUTOR!!!!" Os olhos dela brilharam. -"PRAZER, REGYNA. COM Y MESMO." Jerônimo fez uma nova amiga!!! F I M

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 13/06/2020
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