A praia - Contos de Quarentena 01

Sentia aquele ar de maresia invadir seus pulmões e preencher sua alma que estava vazia. Em muitos dias, era a primeira vez que sentia aquela quentura gostosa como o de uma sopa de mãe invadindo o estômago em um dia frio. Mas não era sopa, era ar. Brisa do mar. Olhos fechados, ela sentia a areia debaixo das suas mãos. Seus dedos penetravam a areia. Sumiam lá dentro. E a brisa continuava a preencher sua alma. O silêncio. Um silêncio absoluto também preenchia o seu ser. O silêncio é o vazio mais cheio que é possível encontrar. Era neste devaneio que seus pensamentos se encontravam. O sol queimava sua pele morena e o suor já escorria por sua testa, mas ela queria sol! Que queime! Súbito, sente sua perna sendo puxada e abre os olhos aterrorizada. Não sabe o que está acontecendo. Quatro homens a cercam. Mais rápido do que o seu cérebro preenchido de silêncio pode raciocinar, ela é colocada em pé, com toda brutalidade. Seus olhos, cegos pelo contato com a luminosidade, aos poucos começam a delinear as formas que a cercam. Estão vestindo roupas iguais. Sim, sim. São policiais ela consegue ver. O que querem, pensa. “Quem a permitiu sair de casa? Não tem responsabilidade com a vida dos outros?”. Esta voz ainda chega em seu cérebro como um devaneio onírico mas que, como um safanão, a traz de volta à realidade. “Senhor, porque eu estaria fazendo mal a alguém?”. “Sua irresponsável! Quer contaminar nós todos!” Agora ela via que todos eles, além do uniforme negro que devia provocar um calor tremendo naquela praia, usavam máscaras. Virou para o homem que falara mais grosso e disse: “Meu senhor, posso explicar! Tenho depressão e não aguentava mais esta quarentena! Precisava de sol e ar!” “Às custas da saúde alheia? Irresponsável!” “Mas meu senhor eu...” “Cale-se! Algeme-a, cabo!” Prezados leitores, imaginem a cena que se via naquela praia deserta: cinco homens de preto, máscaras em suas caras, o suor cegando os olhos e as ordens lhes turvando a mente, algemando uma moça de biquíni que só queria sentir o sol. Pois assim se passou. Levaram-na para delegacia. O frio. Muito frio. Os policiais passavam e apenas uma escrivã que, com muito medo, levou uma toalha para que ela pudesse se cobrir. O delegado chegou. “Então a senhora é a irresponsável?” “Eu não sei o....” “Cale-se, ainda estou falando. A senhora é, sim, a irresponsável. Quer nos matar a todos! Imagine, imagine só, meu Deus! Sair no sol e pegar a brisa com este ar pestilento de vírus!” “A praia não tinha nin...” “Que porra, diabo! Cale sua boca! Ou eu farei com que seja calada!” A mulher abaixou a cabeça e olhos ficaram marejados. Assinou um termo de má conduta. Responderia a um processo. Jurou para si mesmo que nunca mais sairia de novo. Sua vida agora seria sem sol, sem brisa e maresia. Sem nada.

Laanardi
Enviado por Laanardi em 03/06/2020
Código do texto: T6966585
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