Falsas verdades
É possível que muitas boas histórias tenham tido supermercados como pano de fundo, e infelizmente, todas essas tramas testemunhadas por latas, invólucros, garrafas, frutas, eletrodomésticos, tenham se perdido no tempo ou encontrado morada em algum espaço obtuso, uma espécie de cemitério das histórias perdidas. E naquela não tão lépida noite de sábado, mais uma trama intriguista estava prestes a se desenrolar e, assim como outras tantas, fadadas a recamar os limbos.
Tom acabara de romper as soleiras da porta de vidro eletrônica, empurrando vagamente o carrinho metálico, já achando inconveniente o sonido proveniente da má lubrificação das rodas. Enquanto caminhava pela fileira de caixas, a caminho dos corredores onde eram ofertados os produtos, tentou a todo custo não fitar os tributos de uma bela jovem, ligeiramente curvada, trajando um modelo de saia jeans capaz de valorizar as exuberantes pernas avantajadas.
Por um momento, a mente remeteria a imagem da ex-mulher. Nos primeiros anos de namoro, saias faziam bem parte de seu vestiário, exibindo pernas muito mais bonitas. Conseguiu, felizmente, afugentar a tempo o suvenir da mente, antes que efetivamente pudesse passar a povoar seus pensamentos de maneira inconveniente. Procurou pensar como a loja estava vazia naquele dia, com meia dúzia de gatos pingados na sempre disputada seção de eletrodomésticos, além de haver alguns jovens discutindo qual marca de vodca levariam para um luau a beira da praia.
Garotos imberbes, de mãos dadas com essas espevitadas garotas de cabelos pintados, brincos, piercings, shorts justos ou saias encouradas. Todos ansiosos pelo melhor da noite, um mundo de descobertas que ainda estava por vir. Ainda me lembro, eu e meus inseparáveis amigos, nessa idade, definitivamente não fazíamos nada disso.
As queixas demoraram um pouco mais a cessar em seu íntimo. Sem se deixar notar, como uma sombra assombrando o grupo infanto-juvenil, Tom apanhou duas garrafas de seu vinho favorito e após breve conflito de incerteza, retornou para pegar uma terceira garrafa. Sem perceber, todos os seus passos vinham sendo observados por um olhar atento e não era pelas dúzias de lentes vitrificadas, verbalmente reclamando por um sorriso.
Tom chegou a passar próximo da mulher, astuta o bastante para se esconder atrás de um amontoado de refrigerantes em promoção, mas por sorte, pelo menos naquela noite, demonstrava predileção por vinhos, latas de cerveja e energético, seguindo agora em direção ao setor de congelados. Possivelmente, de lá iria incursionar pelos laticínios, padaria... Era tempo o bastante para permanecer no anonimato, passar no corredor de sucos e seguir para o caixa.
Menos de dois minutos depois, a mulher, antes a observar os passos de Tom, carregando na mão direita a cesta cheia de mantimentos, movia-se apressadamente até o último caixa de atendimento, bem próximo a saída. Apenas poucos metros a separava do guichê, só que antes mesmo de celebrar a vitória, o alvo da fugitiva, distraído, saiu de um corredor e por pouco não a atingiu, acidentalmente, com o carrinho.
- Sofia, você por aqui, essa hora da noite?
- Tomas, que surpresa! – Respondeu, esforçando-se ao máximo para realmente ensaiar um ar de surpresa. – Não esperava encontrar você por aqui, afinal o apartamento que alugou fica há uns cinco quilômetros daqui. Algum problema com os mercadinhos daquela região? – brincou Sofia, tentando disfarçar a respiração ofegante, afinal o ex-marido não precisava descobrir que estava fugindo dele.
- Fomos casados tempo suficiente para você me chamar de Tom. Na verdade, Sofia, eu não estava em casa. Minha namorada, a Melissa, mora aqui bem próximo. Nós combinamos passar a noite tomando um bom vinho, assistindo Netflix, com direito a pão de alho, como pode ver e se a fome bater mais forte, um macarrão a bolonhesa – respondeu Tom, utilizado seu peculiar tom de ostentação.
- Vendo todas essas coisas, logo pensei que estava com uma larica daquelas. Bem Tom, foi bom te...
- Espera, eu conheço bem esse vestido! Lembro que há anos gastei metade do meu salário com ele. Mas, até o momento em que éramos casados, lembro bem que ele não cabia mais em você. O divórcio parece ter lhe feito muito bem – Tom tratou de sutilmente – talvez nem tanto assim – devolver a provocação inicial, afinal tinha direito de ir e vir com seu belo possante, um dos poucos bens destinados a ele no pós-separação. Logo, a ex sugeriria ter ido aquele mercado apenas com esperança de reencontrá-la.
- Realmente eu perdi alguns quilos, estou me sentindo mais bonita do que nunca. Você também me parece bem, só acho que sua nova mulher poderia cozinhar pra você algo mais apropriado para um sábado à noite, porque macarrão a bolonhesa, em? Você foi melhor acostumado.
- Você estaria certa se...
- Após todo esse tempo de divórcio, jamais pensei que viveria pra ver você me dar razão.
Tom não escondia certo cinismo em seu riso. - É porque, na verdade, eu que pretendo cozinhar pra ela. Melissa é uma pessoa muito simples, adora macarrão a bolonhesa. Já você, por favor, não me leve a mal, sei que já não tenho nada mais a ver com sua vida. Mas, não precisava se pintar toda e usar um vestido lindo e tão caro como esse para, para, fazer compras.
- Não sei se deveria dizer nada, mas apenas vim comprar umas coisinhas para o almoço de amanhã. A propósito, quando você entrou, Tomas, ou melhor, Tom, percebeu aquela SUV importada, de cor laranja, estacionada ali na porta?
- Sim, vi sim!
- É o carro do meu namorado e nós estamos indo pra uma festa agora. Uma pena ter recebido um telefonema assim que chegamos, era uma reunião de negócios, os executivos são sempre muito ocupados. A ligação impossibilitou de estar aqui, comigo, agora. Adoraria apresentá-los. Talvez outro dia, não é mesmo?
- Bom Sofia, não quero atrasar você e seu namorado, vocês devem ter muitas coisas para executar. O caixa está vazio, pode seguir...
- Na verdade, lembrei que preciso pegar mais algumas coisas, você sabe como sou esquecida. É melhor não deixar a Melissa esperando, certo?
Tom hesitou no começo, mas acabou não resistindo a entregar a Sofia um abraço de despedida. Por um instante, os rostos se tocaram e cada um se viu abstraído pela vastidão do olhar do outro. Se a incerteza, somada a excitante sensação do proibido e principalmente o remorso, não tivesse sobrepujado o desejo, o supermercado e suas câmeras de segurança testemunhariam uma luta travada entre lábios deveras abrasados.
Com as sacolas na mão, Tom de cabeça baixa cruzou a SUV laranja, sem olhar para o lado por um segundo sequer. Minutos depois, foi a vez de Sofia também deixar a loja. Curiosamente, passou pelo carro importado como se não o conhecesse e, honestamente, ela realmente não parecia estar mentindo. Posicionou as compras no banco traseiro do carro popular financiado e retornou para o antigo lar do casal, repleto de lembranças, retirando o vestido e jogando água contra o rosto para remover a maquiagem.
Quase simultaneamente, Tom chegou ao seu apartamento alugado e sequer tentou imaginar uma Melissa sedenta por vinho e macarrão a bolonhesa, preferindo rememorar os tempos de casado, enquanto maratonava uma série qualquer da Netflix e sorvia algumas taças de vinho. Certo momento, os dois se renderam ao sono, sem descortinar os desejos recônditos, afinal casamentos podem chegar ao fim, mas as mentiras que rodeiam certos casais, essas sim são fadadas a perdurar por longo período, quiçá para sempre.