O recomeço de Joca Macarrão

O recomeço de Joca Macarrão

Alexandre Santos *

A rua estava mal iluminada, mas, mesmo na penumbra proporcionada pelas raras lâmpadas acesas, Antero Souza reconheceu um dos assaltantes.

- Joca? - surpreso, o presidente da Associação Comercial de Nossa Senhora de ValVerde deixou escapar quase que automaticamente, pronunciando a última palavra da vida.

Ele não deveria ter falado, pois, ao ouvir o nome do parceiro, o segundo assaltante não pensou duas vezes e, sem qualquer vacilo, consulta ou condescendência, com um único tiro, estourou a cabeça de Antero Souza, que pagou com a própria vida pelo simples fato de ter lembrado e dito o nome do vigilante que, até outro dia, o recebia com um sorriso bem humorado, na portaria da Pilgrim, sempre que visitava o empresário Júlio Epaminondas.

Seis meses antes - na sequência da reunião convocada pelo presidente Antero Souza na sede da Associação Comercial de Nossa Senhora de ValVerde para transmitir a recomendação dos consultores contratados pela Federação Brasileira de Comércio de que a única escapatória da quebradeira seria cortar despesas -, Júlio Epaminondas convocou o gerente geral Floro Abdias ao seu gabinete na presidência da Pilgrimm.

- Preciso de um plano de redução de pessoal, Floro. As demissões começam amanhã.

E, assim, no dia seguinte, junto com muitos outros, o vigilante João Medeiros, conhecido por todos como Joca Macarrão - apelido que o acompanhava desde os tempos de menino na favela do Arouxa em função da sua compleição esguia e franzina - recebeu o aviso prévio da Pilgrimm. Um comunicado. Um simples pedaço de papel botou ponto final na carreira e também no sonho alimentado por João Medeiros de, um dia, trocar o uniforme bege dos vigilantes por um terno preto e vir a ser o chefe de segurança da empresa.

Homem duro, Joca leu o comunicado em silêncio e conseguiu segurar as lágrimas.

O pedaço de papel amassado socado no fundo do bolso da calça provava que de nada adiantara a dedicação exclusiva dos últimos cinco anos, quando, nem mesmo nos dias de doença e até do nascimento do seu primeiro filho, faltara ou chegara atrasado ao serviço, proeza que, no ano retrasado, lhe valera o prêmio de 'funcionário padrão' da Pilgrimm. Agora, de uma hora para outra, Joca via tudo escoar pelo ralo - era como se nada do que fizera tivesse qualquer valor. Aliás, além da decepção, a demissão chegara num péssimo momento, pois, além da notória dificuldade de arrumar emprego, a esposa Jurema estava grávida do segundo filho. Joca sentia-se injustiçado e traído, mas, o quê fazer? Não era homem de chorar sobre o leite derramado.

Era hora de levantar a cabeça e seguir em frente.

Não ia ser fácil, mas Joca daria a volta por cima e recomeçaria a vida.

Embora não fosse politizado, Joca tinha certeza de que era um felizardo.

Esta consciência aumentava quando [ele] recordava a infância sofrida no Arouxa. Sentindo-se um vencedor, [ele] lembrava dos amigos de infância mortos prematuramente de morte-morrida (por alguma das 'doenças de menino' ou contraídas em alguns dos regatos que fluíam pela favela) ou de morte-matada (em assalto, na rincha dos grupos que disputavam o comando da região ou pela polícia). Ele, não só escapara da morte, mas conseguiu se profissionalizar. De fato, graças ao esforço da sua mãe - uma santa mulher que, abandonada pelo companheiro ainda jovem, cuidara dele e de outros filhos, lavando trouxas, trouxas e trouxas de roupas - [ele] conseguira sobreviver aos males da sépia e das tentações do mundo e, se não concluíra os estudos era porque 'isso já seria demais'. Joca não caíra na vida de vícios de muitos dos seus amigos de infância, completara o estudo médio e, depois do serviço militar obrigatório, arrumou um trabalho de vigia e, na sequencia, como se fosse uma espécie de promoção, passou à condição de vigilante, trabalhando sempre na mesma empresa até ser demitido naquela tarde.

Foram bons tempos.

Joca lembrava do dia em que, após fazer a prova final da peça para repor os dentes ausentes na boca, conheceu Jurema (exibida, ela não parava de sorrir para mostrar o aparelho ortodôntico recém colocado). A paixão foi imediata. Dez meses mais tarde, veio o casamento de papel passado, véu e grinalda. Uma cerimônia simples, mas, como qualquer outra daquelas que aconteciam nas igrejas da cidade, com coquetel, música, fotografia e lua de mel. Seis meses depois chegou o primogênito. Ainda em devaneio, a rápida incursão na memória levou Joca ao dia no qual, com a esposa e o filhinho de colo, assinou o contrato da casa própria na agência da Caixa Econômica. Quanta felicidade! Quanta esperança! Naquele tempo, sem saber que vivia apenas uma época de vacas gordas, Joca tratou de fazer coisas que até então a vida lhe negara, proporcionando à família coisas sonhadas em vão pela mãe. Dando o melhor de si no trabalho, sem nunca imaginar que, um dia, pudesse perder o emprego, ao invés de poupar, Joca usava o salário para comprar as coisas necessárias e, também, precisava reconhecer, coisas apenas despejadas (se os ricos podiam ter sonhos de consumo, por que ele também não os podia ter, pensava Joca, com alguma altivez). E, fazendo a festa da loja, Joca comprou geladeira, fogão, televisão colorida, telefone. O crédito era de longo prazo e o salário dava para pagar. Joca fez mais. Comprou um carro de segunda mão e, dando à esposa aquilo que não pode ter, estudou como funcionava o FIES e a matriculou na faculdade.

Como todo desempregado, depois de receber as verbas rescisórias (a Pilgrimm pagou tudo direitinho) e resolver a questão do seguro-desemprego, Joca começou a procurar novo emprego, contactando amigos e distribuindo o currículo por onde pode. Todos os dias, saía de casa cedinho e, depois do 'não' ao qual já se acostumara na agência do trabalho, Joca fazia uma peregrinação, visitando empresas, hotéis, clubes, condomínios e outros potenciais empregadores, conversando com um, conversando com outro. Mas a situação não estava boa. Ninguém estava contratando.

Pouco a pouco, a dura realidade começou a dobrar Joca, que, sem ainda vislumbrar qualquer saída para a situação, já se via sem dinheiro para pagar as contas. Confirmando a história de muitos, a combinação do liseu com a mesmice da busca estéril por emprego produziu desesperança e introduziu novos costumes na rotina de Joca. Antes de voltar para casa, por exemplo, preocupado em descarregar frustrações e raivas adquiridas durante o dia, poupando a família do seu eventual mau humor, Joca passou a dar uma passadinha rápida em algum bar da periferia, cumprindo uma espécie de quarentena para espairecer as amarguras sentidas desde a manhã. Foi numa destas paradas que Joca reencontrou Manuel Viriato, um dos velhos amigos de infância dos tempos do Arouxa, então conhecido apenas como Manelato.

O encontro foi muito bom para Joca, pois, além de trazer-lhe recordações da mais tenra infância, de certa maneira abriu-lhe uma vereda profissional inesperada, que jamais fora cogitada. A luz no fim do túnel surgiu aos poucos. Ainda naquele primeiro encontro, depois de ouvir lamentos e preocupações do amigo, já com a língua solta e amaciada pela segunda ou terceira cerveja, com a voz baixa e sem maiores recatos, Manelato contou como, há tempos, depois de perder o único emprego de carteira assinada da vida, passara a ganhar o pão no mundo do crime.

- A vida tem seus perigos, mas vale a pena - Manelato baixou, ainda mais, a voz para contar que passara uma temporada na penitenciária de Nossa Senhora de ValVerde, onde conhecera muita gente e aprendera muitas coisas. Cerveja vai, cerveja vem, já de forma aberta, Manelato proclamou a importância da amizade

- Se a situação piorar, Macarrão, pode contar comigo. Na minha atividade, sempre há lugar para um bom parceiro - ele se despediu. Talvez como forma de mostrar prosperidade pessoal ou, quem sabe, a pujança do setor no qual atuava profissionalmente, Manelato fez questão de assumir a conta sozinho, pagando o total em dinheiro vivo e, sem esperar o troco, deixou uma bela gorjeta para o garçon.

Aquela foi uma noite infernal. Enquanto Manelato agia seu affair pela cidade, Joca remoía a conversa com o amigo de infância, relutando sinceramente em aceitar a proposta de trabalho.

Não bastasse o surpreendente convite-tentação feito por Manelato, ao chegar em casa, junto o costumeiro abraço esfregado de Jurema, Joca foi recebido por uma enxurrada de boletos, cartas de cobrança e, até, um bilhete manuscrito do agiota do bairro, lembrando-lhe o vencimento do empréstimo usado para pagar a prestação do carro e a faculdade da mulher. Joca ficou agitado. Sequer aceitou os carinhos que, sempre úmida, a fogosa esposa lhe fazia, esperando receber o mesmo. Naquela noite, Joca não conseguiu dormir direito. Revirando de um lado para o outro, em breves cochilos, Joca sonhou coisas horríveis - amarrado, sem poder reagir, em esquetes rápidas, viu homens levarem todos os móveis e eletrodomésticos, o banco tomar seu carro, o corte da eletricidade apagar a televisão e escurecer a casa, o corte da água secar as torneiras, o despejo da casa comprada no 'minha casa minha vida' e, para terminar, expulsa da faculdade por falta de pagamento, Jurema o abandonar, levando o filhinho, que não parava de chorar por falta de comida. Foi demais. Angustiado, com o corpo banhado de suor, Joca acordou de pesadelo.

Estava decidido.

Aceitaria o convite de Manelato. Não iria voltar para aquela vida de merda, de onde, com muito sacrifício, tinha escapado há tempos. A conversa com Manelato foi curta. No telefonema, Joca ainda tentou dar as razões que o levara a aceitar a oferta, mas o amigo abortou o lenga-lenga, poupando-o do sacrifício.

- Você não precisa explicar nada, Macarrão - interrompeu Manelato - Somos amigos e, para mim, isto é suficiente. Você faria o mesmo por mim.

No começo da tarde, um telefonema do agiota provou que Joca tinha feito a escolha certa.

- O empréstimo está quitado. Não sabia que você era amigo de Manelato.

Naquela noite, sob o comando do experiente Manuel Viriato, o ex-vigilante da Pilgrimm João Medeiros abandonou a frustrante vida de desempregado e começou nova atividade. Horas mais tarde, como batismo de fogo, Joca entrou em ação e, por azar foi reconhecido por Antero Souza, presidente da Associação Comercial de Nossa Senhora de ValVerde. Se não fosse a pronta reação do parceiro Manelato, a longa carreira que estava apenas se iniciando teria se encerrado ali, ainda no nascedouro.

(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural