195 - Quarentena
Um dia acordou no fim do sono. Dormiu tudo sem que o relógio o despertasse. Levantou-se e a casa, erma de gente, tinha agora vozes que nunca ouvira. Com a pressa para ir e vir do trabalho, as preocupações, as subtilezas do director e o vernáculo bruto do chefe, andou décadas atordoado. Atordoa-se quem deixa de ter tempo, quem se esconde no trabalho, quem se vicia nas fugas ao real. E, agora, assim dispensado como tantos, via-se aposentado. Era o primeiro despertar sem pressa e, pensando, sentiu indefinidas dores, um sabor amargo de fim, uma solidão de fundo de poço. Ainda forte mas já bastante batido para ser fácil recomeçar, ouviu as vozes da casa e, atento, não chorou. Bebeu amargo o café, espreitou o pátio, acendeu o cigarro. E as vozes diziam, agora, da casa sem graça, sem conforto, sem animais nem plantas, com as janelas por lavar. Havia pó e lixo acumulados e a louça, em equilíbrios de assombro, tocava os armários da cozinha. Olhou-se na cafeteira de inox e viu-se magro. Riu. A seguir inaugurou a mudança. Lavou tudo o que havia para lavar, fez a barba e tomou banho, saiu para ir buscar o gato que dispensara uns dias antes. Oxalá fosse preto, oxalá fosse simpático, quem dera que se acostumasse à casa e à varanda, ao quintal cheio de erva e mato. E apressou o passo, acelerou as pernas e correu não fosse a mulher tê-los dado todos. E as vozes disseram-lhe que sim, que havia um gato todo preto, dos que dão sorte e fazem boa companhia.