SILÊNCIO (conto literário sobre o coronavírus)
(Autor: Leon Cardoso)
De súbito apareceu um sol pesaroso e frio por entre nuvens carregadas. As janelas abertas indicavam um dia qualquer de outono como tantos outros que ele passou recolhido e incerto. Estava acostumado com os desencontros, os descompassos e as sutilizas da vida. Afinal 50 anos já era a metade do percurso. Sorriu disfarçadamente. Na verdade, apenas ensaiou uma aceitação para a vida parecer mais agradável, pois, em sua atualidade, os dias eram sombrios.
Tossiu de leve. Seus pulmões estavam cansados. Tinham dentro de si, nas suas particularidades, o peso dos martírios inescapáveis de tantas outras pessoas em tantos outros países e lugares distintos.
Fazia tempo que não via alguém. Colocou a máscara azul que ganhara da prefeitura no dia da feira livre. Ensaiou uma irritação ao lembrar-se das palavras “vazias” da agente de saúde: “na sua idade tem que ficar em casa”. – “50 anos!”, fez questão de dizer em voz alta para lembrar-se novamente de que não era tão velho. Como ficar em casa e precisar sair pra comprar pão ou fazer a feira ao mesmo tempo? Ele era a favor que todos ficassem recolhidos, mas sabia mais do que ninguém que era preciso intrometer-se no meio dos convivas para obter o necessário para sua subsistência, ainda que o isolamento também resultasse nisso.
Estava confuso. Estava cansado de assistir TV. Tinha passado por todas as séries, animes, filmes e ouvira todas as músicas possíveis. Os jornais diários pareciam repetidos: “Crise no governo atinge diversos ministros”, “Manifestantes pedem o fechamento do STF”, “Presidente tenta interferir na Polícia Federal para proteger aliados”, “Coronavírus mata dezenas de milhares de pessoas no Brasil”, “Prefeito decreta isolamento social”. O presidente falava uma coisa, seu ministro falava outra: demite o ministro. O presidente falava uma coisa, os médicos e cientistas diziam outra: tome desrespeito e pau na ciência. Percebeu que muitos dos que criticam os médicos e a ciência quando estão morrendo correm para os médicos os salvarem utilizando exatamente o método científico. Que contradição demoníaca. O mundo estava de cabeça para baixo.
O que fazer? Para onde ir? Com quem conversar? Essas questões ficaram martelando na sua mente. Antes elas eram facilmente respondíveis, mas agora pareciam confusas e qualquer resposta para elas tornavam-as ainda mais anuviadas. Ele que gostava tanto do recolhimento, agora sem opção – com aquela máscara que parecia grudada no seu rosto – olha-se no espelho e se perde mais uma vez no seu mundo de questões profundas e intransponíveis. Naquele momento, não mais lhe interessava o “penso, logo existo” do filósofo Descartes, nem “no que eu sou”, “de onde vim” e “para onde vou”. Repetiu mais uma vez: O que fazer? Para onde ir? Com quem conversar?
Lembrou das redes sociais. Elas garantiam a presença dos convivas, mas tinha para si que todas as relações virtuais ficavam na superficialidade dessa presença. Eram uma espécie simbólica de fragmentação do outro, pois bastava um clikc para descortinar um mundo cheio, mas espaçoso. Entretanto, o outro, nesse mundo, não garante a exclusividade da conversa, nem o calor da proximidade mútua. O outro, nesse mundo, não permite o toque, os gestos carinhosos, o olhar nos olhos, a verdade naturalmente visual que só pode ser perceptível por trás das telas.
Sorriu. Estava divagando mais uma vez sem achar respostas. Tirou a máscara. Sentou na cama. Bebeu um gole quente de água que estava em uma jarra próxima á luz do sol. Essa entrava pela janela que apontava para o leste.
Refletiu um instante... Os seres humanos são como os pontos cardeais. Uns nascem no norte e se põem no sul, outros no leste e se põem no oeste. E ainda há aqueles que nascem no norte e se põem no leste ou oeste... E assim por diante. Esses últimos sofrem de descaminhos pelo fanatismo político, religioso, ideológico, etc. Nascem, como todos os seres humanos, com o objetivo de pensar, refletir, duvidar, comprovar e acreditar, mas se descaminham no percurso e finalizam sua existência na contramão da plenitude.
Olhou pela janela. A visão dos pássaros ao longe se contrastava com o círculo pesaroso e tórrido de urubus semidomesticados voando em bandos. Fechou a janela com tanta força que rachou um vidro, causou incômodo nos seus tímpanos e assustou um casal de pedestres que passava apressadamente.
Voltou para a cama. Engoliu um comprimido amargo que o médico receitou. Seu corpo tinha retomado a força natural de antes. Sentiu um alívio nos pulmões e um sono quase incontrolável. Adormeceu. Antes de entrar em um sono profundo repetiu silenciosamente por várias vezes: “estou curado”.