Lembre-se de mim quando chover

Segurando as pontas e levando como todo mundo faz, a rotina cansativa; da forma que dá, ou mesmo da forma que não dê, parece um hábito empurrar as coisas como se a nossa capacidade sucumbisse a fazer tudo no automático. Chega o fim do dia, nem sei ao certo o que fiz ou deixei de fazer. Vivendo por viver e só vivendo, tentando aprender algo, com medo do amanhã.

É sim, é uma pequena descrição da minha rotina, mas eu não encontrei palavras melhores ou coisas mais magníficas para representa-la. Em linhas gerais, é um resumo que diz praticamente tudo. É como se eu resumisse um livro de 365 páginas por ano, em um parágrafo de poucas linhas. Metáforas bonitas que não dizem absolutamente nada.

Nesses dias, tão corridos, uma vaga memória vez ou outra me assusta; quando vai contra à normalidade, por ter ocorrido naturalmente. Abri meu guarda-chuvas e fechei a porta atrás de mim; Apesar da pequena proteção, ainda sentia a água molhar minha bota e a barra da minha calça jeans, mas como eu evitaria? A chuva não parecia que ia parar nem tão cedo e eu já estava atrasado para chegar no trabalho.

Corri por dez minutos contra a tempestade e cheguei no metrô, onde sacudi o guarda-chuvas fechado e o lancei dentro de uma sacola. Quando voei para a catraca, percebi que meu bolso estava vazio, nem carteira e nem bilhete. Eu simplesmente não conseguiria passar, nem pagar a passagem. - Puta merda!

- Imprevistos acontecem. - soou uma voz ao meu lado.

Girei meu olhar e um cara com um sorriso frouxo me olhava como que ironizando a situação. - Não dei a mínima. Dei três passos para trás e busquei saída da estação. Cheia de gente, ninguém saía porque simplesmente não dava para sair.

- Cleiton? - disse ao telefone;

- Sim, Maicon?

- Isso! Cleiton, eu não sei se vou conseguir chegar aí hoje. A chuva tá muito forte e estou gripado, com febre, acho melhor eu ficar de repouso.

- Duas faltas em um mês, sete atrasos e um resultado mediano... você sabe o quanto eu contei com você, não é?

- Cof cof, eu vou ao médico, não estou bem. Tchau.

Ferrado? Bastante! - Pelo menos o celular eu não esqueci.

Encostei na parede da estação e deslizei as costas até cair sentado. O mundo girava lentamente. Tinha tanta coisa na minha cabeça que era difícil até perceber o ambiente em torno de mim. Haviam tantas pessoas, para lá para cá, umas secas, outras molhadas. - Dane-se elas.

- Calma, de verdade.

- Para de me pedir para ter calma, você nem me conhece.

O mesmo cara que havia falado comigo antes do telefonema sentou-se ao meu lado no chão.

- Mesmo assim, calma.

Tive um insight quando percebi que seu rosto não me era desconhecido.

- O que está fazendo aqui?

- Nada demais, mas por que a surpresa? Acabei de fazer uns stories no shopping, não olhou o insta ou o facebook hoje?

- Hoje eu acordei tarde, vim correndo para cá... Era para eu estar no trabalho.

- O trabalho que você tanto ama. - ironizou.

- É você sabe.

- Eu sei, sei muito sobre você, já até te vi pelado.

Meu rosto esquentou e provavelmente ruborizou.

- Mas não se preocupa, se você não lembra nada aconteceu.

- É óbvio que eu lembro.

- Sem problemas. A gente dá um match, cada um motivado por alguma coisa que queremos esquecer, saímos, nos aliviamos e nos falamos por meses, saímos de novo e de novo, mas existem um milhão de outras coisas que ocupam nossos pensamentos e o mundo não deixa a gente lembrar nem quem somos.

- Sem dramatizar as coisas.

- Não consigo. - rimos. - eu lembro inclusive que a última vez que nos vimos você tinha...

- Só um minuto. Alô? ... Não, não vou hoje porque fiz uma burrada, mas te conto tudo mais tarde, hoje não vou te ver porque está chovendo, a gente faz uma chamada de vídeo; ok... nossa, mas aconteceu alguma coisa? - tentei disfarçar, mas o cara do meu lado parecia não se tocar, não saía de perto de mim. - Aham, certo. - inevitavelmente fiz cara de triste. - E como você está? ... Nossa, olha eu estou aqui na estação, depois te explico melhor, tá? Beijos, - diminui o tom de voz - também te amo.

- Terminado... e ia perguntar como estava...

- É, isso foi aquele dia.

- Há duas semanas.

- É o que disse, aquele dia.

Ficamos um momento em um silêncio incômodo.

- Olha... eu vou ver se a chuva deu uma diminuída, preciso ir pra casa. Foi bom te rever... Beto...

- Beto...

- Certo, Beto. A gente vai se falando, você não apagou meu número, né?

- Maicon... quem fez isso foi você.

- Olha... - eu levantei, ele me acompanhou. - Sei que não é um momento oportuno, nem uma situação adequada... Realmente foi legal, mas passou, sabe? Foi legal. - disse num tom de voz que só ele ouviria.

- Legal? Eu realmente me apaixonei por você.

- Eu sei.

- Você poderia ter me dito algo, mas eu sei que acontece alguma coisa muito séria com você e quis pagar pra ver. Te mandei mensagens que você ignorou, mas como sempre nos encontrávamos aqui, nesse horário. As vezes que eu fui pra sua casa, o tempo que andávamos por aqui, como se fôssemos um casal...

- Você entendeu tudo errado.

Dei as costas e saí da estação. Que a chuva encharque minha roupa!

Cheguei em casa ensopado, corri e fui direto para o chuveiro. Tomei um banho refrescante. Saí e enquanto me enxugava, percebi algo no meu guarda-roupas. Era um pequeno tecido azul que escapava pra fora. Abri e me deparei com meu vestido azul que eu tanto amava. Diminuía minha cintura e cobria meus ombros largos masculinos.

Aproveitei a depilação pra não precisar me dar o trabalho de pôr meia. Gastei horas fazendo a make e pra finalizar coloquei a peruca. Tava um pouco desorganizada porque ficou um tempo guardada, mas com a mão mesmo consegui arrumar.

Meia hora depois o whatsapp com chamada de vídeo tocou e eu aceitei.

- Ah não, Maicon.

- É Esmeralda.

- Eu namoro um homem ou um palhaço?

- Não rola nem falar comigo no feminino?

- Eu te liguei pra falar sobre o quadro de saúde do meu pai e você fica fazendo isso? Depois a gente se fala.

- Alisson! - ele desligou.

No fundo a não aceitação de quem eu amo me machucava. Eu só queria pôr a mão na consciência de não machucar ninguém com a minhas fugas.

Iago Nascimento
Enviado por Iago Nascimento em 30/05/2020
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