A partida

Ela estava só, antes de todos estarem. Buscava no outro aquilo que faltava nela. Pediu ajuda, mas não viram, clamou por fôlego, a sufocaram, gritou por socorro, ignoraram. Insistiu sozinha, teceu sonhos, a procura foi tanta que encontrou, porém era em outro corpo, outro lugar, outra substância, outra língua. A imaginação denunciou o desejo da infância, talvez agora realizaria, porém, as rugas apareciam, as olheiras de noites em claro ressaltavam o olhar, as cicatrizes do parto, de um joelho quebrado, do murro que levou do lado esquerdo do rosto de um ex-namorado, dos fios brancos que espalhavam no corpo.

O espelho era constrangedor e delator, porque via o contraste das curvas entre o presente e o passado, denunciava pernas que já foram lindas, esculpidas nos campeonatos de capoeira, teve título, foi cordão branco, era ginga. Seus olhos inclinavam para o chão mais uma vez, não tinha alegria, sua visão estava turva, em seu peito o anseio era outro. A respiração estava ofegante, o estrangeiro por um tempo pareceu ocupar o lugar de angústia, mas, logo o coro tímido escrito por Cecília Meireles ecoava em sua mente, os ventos taciturnos entravam pela janela de seu quarto e refrescava a alma.

Levantou, abriu as gavetas da penteadeira de mogno, sabia que havia guardado a passagem ali em algum lugar, sentou na frente da tela azul, viu seu sonho, viu o outro continente, mas parecia tão distante. Hesitava. Pegou uma caneta, deixaria uma carta, mas desistiu de escrevê-la, na verdade, tinha apenas uma certeza, que estava preparada para a viagem. As malas estavam prontas, em mãos segurava a passagem só de ida.

As lágrimas que escorriam eram silenciosas, as formigas não seguiriam o itinerário, as baratas não penetrariam a umidade salgada deixada no opaco do chão. Cuidadosamente, foi no quarto de sua mãe, que já era idosa, beijou a mão dela, era uma forma de ser abençoada em seu novo trajeto. Agora, despediria de sua filha, nos afogamentos internos, fez um cafuné nela, ameaçou movimentar os lábios, certamente pediria perdão, mas calou-se. Foi o único momento que doeu, talvez voltaria atrás, naquele instante os ventos sussurram em seu ouvido, lembrara de sua angústia. O certo era partir, seria o justo com todos, principalmente com ela.

Saiu do quarto de sua filha. Olhou os retratos nas paredes, viu os bonequinhos de porcelana na estante, o vaso de flores que sua mãe guardava por gerações, os sapatinhos de bebê, seria um menino, mas sofreu um aborto. Despedia das memórias que ficavam, se aproximava do estrangeiro ilusório, era hora derradeira, sem pestanejar, partiria, de forma brutal, no guichê da aviação devorava os pedaços em branco, que desciam como fogo, sentia seus ossos, cada molécula a sucumbir sua existência, o amargor nos lábios, os espinhos na garganta.

​Era contagem regressiva, os segundos atropelavam os minutos, na sua mente tudo se misturava, o vazio se camuflava no que parecia cheio, antes que pudesse orientar-se, seu rosto sentia as plumas do tapete da sala, com um olhar horizontal, partiu.

05/05/2023

Jorges Barbosa
Enviado por Jorges Barbosa em 26/05/2020
Reeditado em 26/05/2023
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