A PAZ ME MATOU.
O andarilho exercia sua essência no centro pacífico da cidade. Amanheceu, mas a cidade não acordou. Os carros que compunham o cotidiano sumiram, dava para se atravessar as ruas tranquilamente. Os pedestres matinais ninguém vê mais, o silêncio na avenida era ensurdecedor. Enlouquecendo o senhor Antônio Furtado, que já não suportava mais o horror daquela paz.
Morava nas ruas a mais de vinte anos quando saiu da sua terra natal desiludido por confusões familiares. Não entendia as razões desse novo cenário. Não entendia como o mundo que era seu abrigo tinha se transformado num deserto. Passava pelas ruas sem vida que chegava a se perguntar onde todo mundo foi parar. Os ambientes estavam diferentes, uns vazios outros com pouca gente. As pessoas estavam distantes umas das outras, usavam máscaras e quando senhor Antônio se aproximava sem essa proteção facial alguns o evitam externando sinais para manter distância. Ele que já sofria preconceito pela sua condição de vida não estranhou, já estava acostumado em receber olhares indiferentes, e de prepotência.
Senhor Antônio ouviu falar do vírus chinês quando percebeu comentários de duas pessoas que conversavam sobre mortes na Itália. Ele a princípio ficou indiferente, não acreditando que um ser invisível pudesse a tanta gente machucar e fazer o mundo parar. Não queria aceitar aquela realidade. Não compendia como agora iria sobreviver, pois não tinha a ninguém mais recorrer, já que os que o ajudavam com pratos de comida de vez em quando agora estavam em casa. Não podia aceitar estar agora numa situação nunca dantes imaginada.
Tempo passado e a dificuldade aumentando, e a assim se viu passeando pela praça vazia. Esse local tinha a fama de ser o abrigo dos andarilhos e mendigos. Até que no final viu um grupo de amigos de rua que viviam lá faz uns dez anos. Quando se aproximou viu várias pessoas ao redor do senhor Francisco de 51 anos ardendo em febre e parecia não ter escapado do vírus. Eles tentaram levar para o hospital em meio aos clamores que vem quando se ver alguém aos poucos se desfazer. Andaram trinta metros apenas com ele nos braços e sentiram seu último respiro. Todos em silêncio ficaram, e o choro foi como um coro. Era como se vissem seus futuros na imagem do amigo que se desfez.
O sentimento de abandono tomou conta de Antônio Furtado. A rua que tinha se sido sua única companheira agora era uma inimiga por abrigar o vírus inimigo. Não tinha o privilegio de estar numa quarentena. Sentia-se desnorteado, como se o caos tomasse conta da sua alma e falava:
- Nunca pensei que até o céu que era meu teto poderia ser meu inimigo por abrigar o inimigo
Ainda pensativo na morte do amigo deu por si de que sua saúde começava a piorar quando sintomas começaram a se manifestar. Foi então que se deu conta de seu amigo poderia o ter contaminado. Horas passaram e foi ficando cada vez pior, neste momento o desespero tomou conta de seu peito como uma agonia paralisante. Não podia acreditar. O desespero já era tanto que já andava cambaleando com medo da morte. E não teve outra sorte depois de um pouco andar, deitou no banco da praça sem ninguém o testemunhar e dormiu para nunca mais acordar.
Ele que só queria a sua vida de volta, não para ser melhor, mas para ser o que era antes, pois a solidão que vivia era amenizada pelo barulho do ambiente urbano, esse caos da cidade o fazia se sentir menos só, mesmo com os preconceitos que recebia. Eles eram sua companhia. Com o esvaziamento do mundo sua solidão dilatou virando amargura e desencantamento por ter perdido de si o sentido que a vida “normal” de antes dava para seu existir.
Renato Jr 23/05/2020