Um homem comum?
Um homem comum?
Olhando daqui parecia um homem comum no banco da praça. Sem atrativos. Nada de brilho no olhar. Apático. Indiferente. Tão somente respirava. Sentado ereto e com os braços estendidos até os joelhos. Pés juntos. No esquerdo, sapato preto. Marrom no direito. Este era o detalhe que o transformava em assunto dos que por ele passavam. Espantados, riam ou lamentavam sem saber exatamente o porquê.
De longe percebia-se sua palidez seca na pele endurecida pelo passar do tempo. Roupas limpas e surradas. De perto talvez exalasse um perfume deixado no corpo por algum sabonete inexpressivo. A cada badalada do sino da igreja anunciando um quarto de hora, enfiava a mão no bolso do paletó, retirava o maço de cigarros e o isqueiro vermelho-escarlate. Ao último som, acendia o cigarro e sorria.
Não atirava a sobra do cigarro no chão. Apagava-o, nos dias pares, na sola do sapato preto e o guardava em uma caixinha que trazia sempre com a mão direita aberta. O esmero era tanto, que para um observador atento daria a impressão de ser do mais requintado cristal. Era de papelão vermelho-escarlate. O sorriso apareceria no próximo cigarro. Assim permanecia por exatamente seis horas.
Às vezes alguém sentava-se ao lado dele. Quando o cumprimentava, recebia de retorno um silêncio frio e distante. Não trocava única palavra. Espantava com um abanar de mãos os pássaros que ousavam dele se aproximar. Aos pombos dirigia um ríspido bater de sola do sapato marrom. Com o preto empurrava as folhas perdidas das árvores. Essas recebiam um leve balançar de cabeça. Seria respeito por também estarem ali?
Da janela da sala era sempre observado e admirado pela pontualidade de seu gestual diário. Nos dias ensolarados usava um largo chapéu claro que enchia de sombra seu rosto. No inverno, trocava-o por um acinzentado que escondia seus cabelos brancos sempre muito bem penteados. Dava a impressão que ao ajeitar o chapéu sentia orgulho em mostrá-los.
Caso a chuva marcasse presença, usava capa preta, daquelas bem antigas e um comprido guarda-chuva de pano também preto e sofisticado cabo de madrepérola. Nada o abalava. Dava a nítida impressão de estar cumprindo uma obrigação. Ou estaria sempre a aguardar alguém? Havia um detalhe. Ao chegar e ao se retirar olhava ao redor como se procurasse algo. Tinha apreensão nesse gesto.
O banco era o mesmo todos os dias. Aquele, do lado esquerdo de quem daqui observa e bem defronte da padaria mais antiga do bairro. Ao perceber que estava ocupado, dava voltas pelo lado direito da praça até que permanecesse vago. Somente nesse momento se sentava. Não comia e nem bebia. Fumar era seu deleite. Cigarro barato e com forte odor amargo de nicotina. Assim transparecia nos semblantes dos que por ali transitavam.
Houve um período sem aparecer. Era outono.
A praça estava enfeitada para as festividades de final de ano na manhã em que o homem surgiu trazendo uma pequena mala preta com palavras em vermelho-escarlate. Forçando a visão era possível ler: Casa do Bom Idoso. Ocupou seu espaço no mesmo banco. O rosto desenhava uma ligeira esperança de alegria. As passadas tinham sido mais firmes. Havia decisão em seu andar. O sino soou sozinho. O cigarro não compareceu.
Vestia seu antigo terno com aparência de novo. Os sapatos, cada um de sua cor, lustravam de tanto brilho. Trazia ainda seu guarda-chuva enrolado em uma fita madrepérola. Na cabeça, o chapéu claro. O outro certamente estaria na mala. Ou o teria abandonado, por ter triste aparência. Pela vez primeira consultou as horas em seu dourado-velho- relógio- de- algibeira. Apreensivo? Temeroso? Nervoso? Saudoso?
Somente ele para dar a exata resposta. Provavelmente aquela jovem senhora de vestido lilás que para ele acenou da janela do carro que parou na frente da padaria saberia. Ela demonstrava inquietação e até mesmo uma certa contrariedade. Notava-se pela rispidez de seu distante cumprimento. Não houve abraço e aperto de mão. Leve acenar, talvez. Encaminhou o homem para o banco de trás e mandou o motorista seguir. Ela entrou em outro veículo e acompanhou o primeiro.
Ao darem a volta na praça foi possível notar seus olhares. O homem trazia um suave sol em suas lágrimas que molhavam a palidez seca de sua pele endurecida pelo dissabor da solidão. Ela, com sua altivez, apagava a luminosidade do afeto. Não admitiria olhar para trás e enxergar o passado na presença daquele homem comum.
Seria!?
Alexandre Sansone
25.05.2020