190 - Quarentena
Tinha gatos e cães. Recolhia-os da rua. Como era viúva faziam-lhe companhia e obrigavam-na andar como o médico lhe pedira que fizesse. Depois chegou o covid-19, que raio de nome para um medo, que coisa assustadora! Nem passeios com os cães nem saídas que não fossem prementes. A sala era limpa muitas vezes mas agora os bichos ficavam nela em cestos, alcofas, cobertores sobre o sofá onde ela se ajeitava para ver o que havia. Por regra acabava a dormir vestida no meio dos gatos, com a televisão a trabalhar. Os bichanos escapavam para o telhado e voltavam com as necessidades satisfeitas e os cães saiam com o filho do vizinho para o mesmo efeito. Dava-lhe uns trocos, dizia-lhe amabilidades e enchia-o das guloseimas que houvesse. Hoje não sabia dos óculos e portanto nem renda nem bordados no bastidor. Começara cedo a esquecer-se das coisas e por isso anotava tudo, importante ou não, num caderno com letrinha apertada. Sem óculos também não haveria escrita e, sem registo do que fazer, era uma velha perdida numa sala com cães e muitos gatos.