189 - Quarentena
Já antes dos noventa ela se enrolava nas dores da coluna e só de gatas subia ou descias as escadas do primeiro andar onde morava. Chegaram-lhe os limites quase ao mesmo tempo: perdera o ouvido, dobraram -se-lhe as costas numa grande marreca e o cabelo caiu-lhe no alto da cabeça. Vivia sozinha a contar o dinheiro que espalhava um pouco por toda a casa. Traziam-lhe as refeições e Rosa vinha para lhe dar o banho e trocar as fraldas. Estava acamada há uns meses. Via televisão no máximo do som e acompanhava todas as novelas. – Vejo-os na cozinha e na despensa a escavar o chão da casa como quem procura alguma coisa. Não me diga que não porque eu ouço-os. Olham para mim como se não me vissem, como se eu não morasse aqui. Nada posso fazer contra esta gente e só queria entender por que aparecem, mexem, desarrumam. Depois, deixou de os ver e ficou a pedir que lhe falassem mais alto e a gritar para, sobrepondo-se à televisão, se fazer ouvir. Ao telefone queixava-se da Rosa e chamava-lhe desastrada e, quando desligava, dizia à Rosa que a nora não batia bem das ideias e que só esperavam que morresse para virem buscar o que houvesse e para vender a casa. Vão levar tudo menos o dinheiro que já dei para a compra do jazigo, dizia rindo-se muito.