O encontro de Água Santa
O encontro de Água Santa
Alexandre Santos (*)
Estava programada para ser a maior recepção já vista na pequena Água Santa. Uma festança digna de registro nas colunas sociais, especialmente porque - os leitores do noticiário policial estavam fartos de saber - Água Santa não era um lugar qualquer.
Todos sabiam que em Água Santa, desde o começo dos tempos, por mais banais que pudessem parecer, independentemente de onde fossem tratadas - delegacias, praças, bares, botequins, igrejas, padarias ou hospitais - desavenças e acordos costumavam ser, conforme o caso, superadas ou obtidos à bala, sempre à bala, em duelos ou emboscadas que, normalmente, deixavam mortos e feridos. Ali não havia uma única pessoa que, por si própria ou por parentes, vizinhos, amigos ou colegas, não tivesse matado, escapado de atentado ou, pelo menos, não estivesse jurada de morte. Os mais precavidos tinham testamento pronto e atualizado e, por praticidade, sempre trajavam roupas discretas, pois nunca sabiam se teriam de acompanhar algum velório ou enterro. O interessante é que, habituada à violência, Água Santa não era um lugar de ódio ou de medo. Ali, a violência era corriqueira. As pessoas matavam e eram mortas como se isso fosse coisa normal. Afinal de contas, rezava o entendimento geral, um dia, as pessoas têm de morrer.
Naturalmente, com o tempo, por prejudicar negócios, carreiras e reputações, a violência que fazia Água Santa ser conhecida e reconhecida como terra-sem-lei passou a preocupar a banda moderna da elite local, juntando-a, aparente e circunstancialmente, àqueles que, movidos por razões culturais e humanitárias, combatiam sinceramente o modo-sem-dó de agir e de pensar prevalecente na região.
Assim, um observador distante poderia até pensar que, de uma hora para outra, o velho coronel Amâncio Alencastro, quinta-essência da velha cultura e que representava a fina flor da elite aguassantense, estava aliado ao professor Joel Limeira, líder da oposição e ferrenho crítico das velhas oligarquias da região. Nada mais distante da realidade. Separados como água e azeite, eles defendiam métodos diferentes de combate à violência. Enquanto, movido por razões políticas, Joel atacava a raízes culturais e econômicas da violência, acusando o adversário de 'hipócrita', [o Coronel Amâncio] preocupado com a linguagem fria dos cifrões e sem esquecer os velhos métodos (aos quais recorria sempre que necessário), o Coronel Amâncio defendia o reforço do aparato policial e jurídico (por ele controlado), acusando o adversário e desafeto de 'radical' e 'subversivo'.
De qualquer forma, quaisquer que fossem as motivações, Água Santa estava ávida por novos tempos e, bem ou mal, sinceramente ou não, as velhas famílias passaram a arejar a convivência no local. Os maiorais aguasantenses passaram a sorrir mais, a exigir discrição dos capangas que faziam serviços sujos e, em verdadeiras operações de marketing, [passaram] a convidar celebridades para curtas temporadas de desfrute das belezas do distrito e da 'amabilidade' possível àqueles homens violentos e sempre armados.
Pois bem, naquele dia, na entrada da vila, ao pé do imponente portal recentemente construído pela prefeitura, estava o comitê de boas-vindas de um convidado ilustre. Designados pelo coronel Amâncio, ao lado de caminhonetes e motocicletas, embora fortemente armados, Jacinto e seus homens estavam pouco à vontade com aquela missão. Havia razão para isto, pois, ao invés da ação a que estavam habituados, daquela feita (como vinha ocorrendo já há alguns dias), ao invés de meter bala em alguém, eles apenas identificariam um visitante e, na sequência, depois de dar o sinal para o início das homenagens programadas pelas ruas da vila, o conduziriam, em cortejo de honra e segurança, até o velho chalé dos Alencastros, onde a matrona Esmeralda e o Coronel Amâncio o receberiam com salamaleques e regabofes.
Estava tudo combinado.
Depois das boas vindas iniciais dadas pessoalmente por Jacinto, um dos jagunços acionaria a girândola-prima - uma geringonça rotatória que, segundo o fogueteiro contratado a peso de ouro em Campina Grande, em meio a uma chuva de luzes faiscantes multicoloridas, espocaria fogos por dez longos minutos (criando, se fosse o caso, chance para disfarçar o disparo das armas de fogo sempre engatilhadas), dando o sinal para salvas por toda a cidade. O sistema era simples. Pouca gente sabia, mas, dispostas em pontos estratégicos e conectadas em dominó segundo um padrão visual, outras girândolas estavam prontas para explodir a um mero riscar de fósforo para acionar a girândola seguinte, que, por sua vez, dispararia outra e, assim, por diante, formando um grande caminho de luz e som pela cidade. Assim, coberta de luzes e pipocos, a vila inteira explodiria alegria pela visita ilustre, em sólida demonstração de que tomada pelo espírito gentil, Água Santa não era mais o lugar violento do qual falava a história e a memória da região
Embora este fosse o plano, a realidade era outra.
De fato, como bem diziam os dentes cerrados e as garras afiadas eventualmente encobertas por sorrisos falsos, sempre embebida por um caldo cultural de sangue, ferro e fogo, Água Santa não mudara e, à despeito da luta incansável do professor Joel e dos falsos sorrisos dos Alencastros, era a mesma de sempre. Quem duvidasse, que perdesse tempo contando o número de mulheres e crianças que, a cada dia, reforçava o rol das viúvas e de órfãos do distrito. Mesmo assim, havia um nítido esforço para mudar, pelo menos na aparência, a imagem associada (com justiça, diga-se passagem) à vila e àqueles nela nascidos ou que nela moravam.
Alheios a tudo isto, sempre certificando-se da presença das armas encaixadas nos colderes cobertos por longas camisas e casacos ('Seguro morreu de velho' era a máxima adotada desde sempre pelo clã, pois, afinal de contas, nunca se sabia com certeza o quê podia ocorrer), Jacinto e sua turma permanecia na estrada à espera do tal convidado que deveria ser tratado à pão de ló.
- Chegarei por volta das seis - quase ao mesmo tempo, Sílvio Bessa e César Canto disseram, respectivamente, ao coronel Amâncio e ao professor Joel. Eles não se conheciam pessoalmente, mas, ao telefone, houve grande empatia, parecendo ser velhos amigos.
Coincidentemente, Sílvio Bessa e César Canto eram escritores renomados e bem sucedidos, autores de livros premiados e expressivo número de fãs e seguidores. À despeito disso, fora o cabelo longo e a barba sempre por fazer, as coincidências paravam aí. De fato, partidário da erudição e do parnasianismo, Sílvio Bessa entendia a arte como coisa de [e para as] elites, atribuindo à cultura popular a pecha de 'mero folclore tribal' (palavras dele). De sua parte, entusiasta da cultura popular, César Canto amava a subversão artística, desde as novas formas poéticas até as coreografias pós modernas, passando por todo o tipo de contracultura. No mundo das artes, Sílvio e César eram como água e fogo, representando correntes antagônicas e, consequentemente, agradando públicos distintos. Por razões óbvias, Sílvio Bessa se encaixava nas expectativas culturais do coronel Amâncio e, por razões inversamente recíprocas, César Canto [se encaixava nas expectativas culturais] do professor Joel.
As visitas foram ansiosamente aguardadas e preparadas, cada qual a seu modo, tanto pela Casa Grande como pela Senzala. Numa ponta, para receber o escritor Sílvio, fora o comitê de recepção e os fogos pelo caminho, Dona Esmeralda mandou preparar jantar de 50 talheres para uma seleta lista de convidados, com direito a orquestra de câmara e presença de blogueiros e colunistas sociais. De sua parte, além de requisitar o salão paroquial para uma reunião com o escritor César, o professor Joel mandara espalhar entre os intelectuais, estudantes, artistas, descontentes e subversivos de toda ordem que, por volta das oito, em passeata, percorreriam as ruas centrais de Água Santa até a praça central, onde haveria um ato público contra 'o modelo econômico que escraviza as pessoas e faz a violência aumentar'.
E, cumprindo a hospitalidade local, ambos os grupos trataram de buscar os convidados no Portal da cidade.
Ao ver a jagunçada do coronel Amâncio, os dois estudantes indicados por Joel para buscar o escritor César Canto, recuaram e, sem saber qual figurão chegaria à cidade, deixaram o bom senso falar mais alto e, evitando o confronto direto (o quê, nos termos locais, poderia redundar em sangue), se recolheram a um recanto discreto nas proximidades 'até a poeira baixar'. Afinal de contas, os capangas não iriam ficar alí indefinidamente. Seria uma questão de tempo até o escritor César chegar e, conforme combinado, ser levado para o salão paroquial.
Como esperado, a movimentação no Portal começou na hora marcada.
Pouco antes das seis, César Canto chegou ao Portal de Água Santa. Estranhamente, ao invés de um carro velho (que Joel deveria ter), César viu uma potente camionete, destas que os milionários costumam comprar para impressionar os vizinhos, e, mais ainda, [viu] umas quatro ou cinco motocicletas. O mais estranho era que os homens não pareciam professores ou estudantes. Estavam mais para o tipo parrudo, daquele que não se interessa por literatura, muito menos por revolução social. De qualquer forma, sem alternativa, César se aproximou e parou na barreira de recepção:
- Você é o escritor? - Jacinto perguntou e, diante do aceno positivo, depois do "Bem vindo à Água Santa" (ensaiado com Dona Esmeralda muitas vezes), rosnou um 'Me siga" e, com uma barrufada festiva, gritou para a jagunçada
- O homem chegou! Vamos lá - liberou a recepção preparada.
Tomados pelo entusiasmo, sem conter o espírito belicoso (então contido contra vontade por uma tênue casca de bom comportamento) e momentaneamente esquecidos da ordem de 'só abrir fogo em caso de necessidade', alguns dos jagunços saudaram a notícia com gritos de guerra e, para surpresa de César Canto, sacaram a armas e dispararam saraivadas para o alto, alvejando dois ou três bacuraus que iniciavam a jornada noturna. A girândola prima cumpriu sua função e, ao tempo que enchia a entrada da vila de alegria, fazendo correr cachorros e acordando velhos e bebês, acendia o estopim que acionava as demais [girândolas] pela cidade. Foi uma festa e, à medida que fogos explodiam, estimulando um ou outro tiro para o ar, o distrito se cobriu de fumaça colorida e barulhenta. De sua parte, achando protagonizar esquete contra as elites causadoras e beneficiárias da concentração de renda, contendo o sorriso ("Este Joel só pode ser doido ...", pensou divertido), César caprichou na encenação e, dirigindo o velho sedan com pose de 'dono-do-mundo', seguiu a caminhonete que, buzinando e piscando loucamente como um vagalume gigante, abria o cortejo ladeado por motocicletas sirenadas.
Minutos mais tarde - sem saber que, cercado de mesuras, em festa, um impostor era conduzido para a casa dos Alencastros -, o escritor Sílvio Bessa chegava ao portal de entrada de Água Santa com grande decepção, pois, habituado a ser paparicado aos píncaros da bajulação barata, não esperava acolhida tão chinfrim - só dois rapazes imberbes, que, saídos repentinamente do nada, acenaram-lhe de longe e, depois de um grito "vamos logo daqui", aceleraram a motocicleta e saíram em disparada, arrastando-o consigo. A julgar pela conversa de dias atrás com o coronel Amâncio, ele [o escritor Sílvio] seria recebido com pompa e circunstância. Na realidade, precisando revigorar o ego, fora a perspectiva de homenagens e adulações extremas que levaram Sílvio aceitar convite para visitar lugar tão mal afamado e tão fora dos mapas. Ao invés da apoteose esperada, aquele nada. Quanta decepção. Sílvio Bessa ficou irritado, especialmente porque, a julgar pelos fogos que espocavam por todo o lugarejo, alguma coisa (uma festa popular, um comício, a visita de um chefe político, quem sabe, uma coisa importante qualquer) ofuscaria a sua estada em Água Santa. Irritado, Sílvio explodiu um faniquito de ódio.
Pelo bem ou pelo mal, vinte minutos mais tarde, ambos escritores estavam nos destinos para os quais, certo ou errado, tinham sido levados. Eles ainda não sabiam, mas estavam prestes a viver experiências das quais jamais esqueceriam.
Na residência dos Alencastros, ao invés de recebido pelo professor Joel em ambiente simples conforme [ele, o escritor César Canto] esperava, depois de conduzido em silêncio (como se estivesse detido) a uma sala exageradamente decorada em primoroso exemplo de cafonice, o escritor César Canto foi recepcionado por um casal enfatuado. 'Estes devem ser os pais do professor Joel', pensou o escritor, já habituado às contradições decorrentes do despertar de gerações progressistas no seio de famílias conservadoras. De sua parte, prontos para receber um artista de aparência estilosa e marcado pela afetação própria das estrelas, os Alencastros estranharam a forma quase desleixada como o visitante se apresentava. "Às vezes, a simplicidade é o mais extravagante dos estilos", Dona Esmeralda cochichou para o marido, procurando explicação para a decepção.
- É uma honra receber escritor tão ilustre - Dona Esmeralda curvou uma mesura (por pouco, não fez a genuflexão que julgava dever às celebridades da capital).
- Água Santa está muito feliz com a sua visita - estendendo a mão fria e comprida, o Coronel Amâncio abriu o sorriso artificial reservado aos momentos julgados importantes,
Embora tenha começado meio sem jeito, girando as superficialidades das superficialidades, aos poucos a conversa ganhou nitidez e, progressivamente, passou a realçar as diferenças de como o convidado e os anfitriões viam o mundo.
- Dizem que Água Santa é um lugar violento, mas é o mundo que está violento.... - como se estivesse preparando terreno para assuntos mais enquadrados no arcabouço cultural da Casa Grande, Dona Esmeralda levantou a peteca.
- É, sim. O crime e a violência estão por toda a parte - concordou o escritor cabeludo.
- Mas isto tem jeito e todos nós sabemos qual é - o coronel falou com sinceridade - Infelizmente, existem coisas que, hoje em dia, por conta desse tal de 'Direitos Humanos' a gente não pode sequer falar, mas, Deus que me perdoe, a solução para isto é o Cacete
César sorriu meio sem graça e, para não explodir uma grosseria, fingiu não ter ouvido a opinião.
- Meu avô dizia que se Cacete não resolver alguma coisa, é porque foi pouco. Ele era um homem sábio - o coronel continuou, num frouxo de riso contido, esperando algum sinal de aprovação cúmplice.
Sem mais aguentar tamanha insensibilidade e preconceito, César desconversou:
- A que horas Joel chegará?
- Joel? Que Joel? - os anfitriões gritaram juntos.
Guardadas as proporções, o desencontro também acontecido, quase simultaneamente, no salão paroquial não foi diferente.
- Vocês estão malucos? - Sílvio desceu do carro insultando os rapazes que o guiaram desde o Portal do lugarejo. Quebradas as suas expectativas, ele estava injuriado pela forma descortês como, segundo achava, fora tratado ao chegar em Água Santa. No íntimo, Sílvio esperava, pelo menos, ser recebido pelo coronel que lhe fizera o convite. Mas, fazer o quê?, pensou ele, cada lugar com seus costumes. Demoraria muito até a uniformização cultural (tão sonhada por ele) fazer com que, estivesse onde estivesse, no Oiapoque ou no Chuí, um homem da sua envergadura intelectual fosse recebido com pompa e deferência. Ele ainda suspirava o desencanto quando, alegre e demonstrando uma intimidade que não tinha, chegou um jovem (provavelmente filho do coronel Amâncio, pensou o erudito).
- Como é que é? Fez boa viagem?
De tão chateado, Sílvio Bessa preferiu não responder. Afinal de contas, pouco tinha a dizer àquele a quem considerava um mero fedelho.
- Se prepare para a luta, pois Água Santa parece viver os tempos do Império ou do Far-West. É preciso mudar muita coisa.
Sem vontade de polemizar e, mesmo, reiterar os protestos, Sílvio decidiu ficar calado e deixar o jovem falar sem interrupção. Só depois de algum tempo, cansado de ouvir as bravatas juvenis, o professor perguntou:
- Quando chega o coronel Amâncio?
- Coronel Amâncio? - o coro revoltado foi imediato.
Na Casa Grande, assim como na Casa Paroquial, o desconforto causado pela referência ao ferrenho adversário do coronel por aquele que se esperava convidado de honra foi grande. A simples menção ao nome de Joel Limeira atiçou urticárias e sextos sentidos nos anfitriões, alertando-os sobre a possibilidade de estarem diante de um farsante. Com esforço e torcendo para estar enganado, o coronel Amâncio respirou fundo.
- Qual é o seu nome, meu filho? - o coronel perguntou com evidente esforço para conter a explosão que lhe fervia o sangue.
- Ora. Sou o professor César Canto, amigo do seu filho Joel.
- O senhor não é o escritor Sílvio Bessa? - Dona Esmeralda balbuciou.
- Sílvio Bessa? - o rapaz deu uma gargalhada - Deus me livre! Quero distância daquele cara.
Esquecido momentaneamente do embusteiro à sua frente, pouco importado em ser ouvido pelos presentes, o coronel gritou
- Jacinto! Quem é este moço?
- Não é o escritor que o senhor mandou buscar, coronel? - o chefe dos jagunços se esquivou.
Se os tempos fossem outros, nem a presença dos convidados, inclusive jornalistas, conseguiria evitar a ordem imediata para a adoção de alguma solução extrema como forma de punir e compensar a decepção dos maiorais. Afinal de contas, além do constrangimento e das despesas com as homenagens, o ridículo que o embusteiro fizera passar o coronel nunca seria esquecido. Mas, os tempos eram outros. Agora, (mesmo querendo), o coronel não podia mandar encher alguém de bala. Não. Viviam outros tempos e as coisas precisavam ser resolvidas com diplomacia.
- Vamos fingir que este encontro nunca aconteceu. Acompanhe Jacinto de volta ao marco zero e, de lá, pegue a estrada. Nunca mais volte aqui. Se eu o ver mais uma vez, não me responsabilizarei pelos meus atos.
Imediatamente cercado pelos jagunços de Jacinto, sem alternativa, César foi conduzido ao seu velho carro e, poucos minutos mais tarde, após jornada silenciosa, desta vez sem alarido ou festa, [foi] deixado no portal de entrada do distrito.
- Pegue seu carro e vá simbora. O coronel mandou dizer para você nunca mais voltar - Jacinto fez questão de falar com a coronha do revólver sacada pela abertura da jaqueta.
Instantes mais tarde, já refeito do susto, César Canto ligou para Joel Limeira, interrompendo o discurso inaugural da reunião na qual [ele] era aguardado no salão paroquial. Depois de ouvir as gargalhadas despertadas pelo relato da bizarra aventura que vivera na Casa Grande, César aceitou as linhas gerais do Plano B proposto por Joel para retomar o projeto original da sua vinda à Água Santa. Agora era esperar alguns instantes até a chegada do seu pessoal.
Sílvio Bessa jamais contaria, mas, segundo pensava ele, em lembrança fadada a acompanhá-lo por toda a vida, por mais incrível que pudesse parecer (especialmente num lugar remoto como Água Santa), [ele] caíra numa armadilha e fora levado contra a vontade a uma célula terrorista. Um lugar onde, segundo testemunhou, se tramava abertamente a mudança do regime econômico do País, falando às claras sobre temas subversivos, como 'distribuição de renda', 'democracia de oportunidades', 'pleno emprego' e 'redução das desigualdades sociais'. Ficara chocado! Afinal de contas, o quê ele tinha a ver com a questão política? Sílvio se perguntava. Na realidade, mais do que chocado, Sílvio Bessa ficara apavorado. Ele não podia ficar ali. Logo ele, um homem culto e partidário da monarquia, não podia se misturar com aquela ralé comunista. Convencido ter sido vítima de um sequestro, Sílvio Bessa manteve-se alheio ao falatório sobre a importância do emprego, da renda, da cultura e da educação para a superação definitiva da violência que parecia hipnotizar os cabeludos (inclusive como forma de precaução contra a famosa Síndrome de Estocolmo). Se não fizesse algo, seria tragado pela situação e terminaria cúmplice de alguma ação terrorista.
Ele precisava fugir o mais rápido possível.
Todo antenas, Sílvio esperou o momento propício. Não demorou. De repente, depois de atender e falar rapidamente ao celular, o tal Joel, que parecia liderar o aparelho terrorista, levantou-se para continuar a conversa fora do salão. Deveria ser um caso grave, pois minutos se passaram sem que Joel retornasse. Aquele era o momento [tão esperado por Sílvio]. Pé-ante-pé, [ele] saiu de fininho. Se fosse perguntado, com desculpa pronta, diria que precisava buscar alguma coisa no carro. Não foi necessário. De tão entretidos com a verborreia estéril, ninguém o interpelou. Aquele - Sílvio chegou a pensar com uma ponta de sarcasmo - deveria ser o grupo terrorista mais incompetente do planeta, pois as chaves do seu carro sequer tinham sido confiscadas. Graças a Deus! Fingindo naturalidade, caminhou até o estacionamento e, contendo a vontade de correr ao carro, esperou o motor ligar para socar o ar em comemoração à liberdade. Agradecendo o telefonema que retirara Joel do salão e, sobretudo, a tecnologia que fazia seu carro ser o mais veloz e silencioso da categoria, Sílvio engatou a primeira marcha e, experimentando o torque da máquina pela primeira vez, acelerou tudo o que pode, indo aos cem quilômetros em poucos segundos. Pelo retrovisor, viu quando, capitaneados pelo tal Joel, os terroristas saíram em disparada e tomaram as motocicletas seguindo no seu encalço. Vendo-as pelo retrovisor, o velho escritor percebeu que sua fuga convertera-se numa prova de velocidade. E, temendo ser recapturado, acelerou o mais que pode. Disposto a jamais colocar os pés de volta em Água Santa, Sílvio acelerou o carro ainda mais e passou chispando pelo Portal. Estava tão compenetrado em fugir que não viu quando, ao invés de segui-lo pela estrada, as motos reduziram a velocidade e tomaram o acostamento, parando ao lado de um carro mal estacionado.
Sílvio Bessa jamais saberia, mas, ali, no interior de um velho sedan quase escondido na área usada pelos poucos turistas para coleta de fotografias no entorno do Portal de entrada de Água Santa, em arremedo da reunião programada originalmente para o salão paroquial, concordando em que a raiz da violência estava, não só na matiz cultural, mas, também e principalmente, na organização política, social e econômica da sociedade, o jovem líder Joel Limeira e o escritor César Canto combinaram como seria o lançamento da campanha 'Paz, emprego e renda'.
Ainda naquela noite, arrancando urros de raiva no coronel Amâncio Alencastro, cercado de jovens de todas as idades, depois de voltar ao distrito em barulhenta carreata ao lado de Joel Limeira e seus 'subversivos', o escritor César Canto proferiu o discurso revolucionário que abriu caminho para a ruína da velha oligarquia que impedia o desenvolvimento de Água Santa.
(*) Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural