O taxista apressado
O taxista apressado
Alexandre Santos*
A situação em casa estava muito difícil.
Depois de seis meses desempregado, Luiz André já não tinha mais a quem recorrer ou mais de onde tirar dinheiro para o sustento da família - a esposa Aninha e a filhinha Camila, as quais, coitadas, nada tinham a ver com a desdita profissional por ele amargada. Aliás, ele estava convencido de que também não tinha culpa por aquela situação infernal. Não fora demitido por incompetência, insubordinação ou desleixo. Perdera o emprego porque, para manter as portas abertas, a Pilgrimm Secos e Molhados, empresa na qual trabalhara por todas a vida, precisara reduzir o quadro de pessoal. Por outro lado, não podia ser acusado de acomodação e, se não conseguia emprego era porque, à despeito da experiência e dos cursos de aperfeiçoamento mostrados no currículo, a crise econômica persistia e as empresas ainda não tinham começado a contratar gente. Pelo contrário, as empresas continuavam a demitir.
Embora paciente - Luiz André acreditava que, um dia, as coisas voltariam a melhorar, pois, como dizia seu velho pai, 'não há bem que sempre dure ou mal que nunca acabe' -, Luiz André dava demonstrações de que começava a exasperar. Ele tinha razões para isto. Afinal de contas, para se sustentar nestes tempos de desemprego, já consumira a pequena poupança, esgotara o limite do cheque especial, [esgotara] a disponibilidade do cartão de crédito, [esgotara] a paciência do gerente do banco. Ao contrário de outras pessoas que, igualmente desempregadas, ainda contavam com a possibilidade de converter alguma placa de 'vende-se' ou 'aluga-se' em tostões salvadores, ele não tinha bens para vender. Trocara o carro por um modelo mais simples e mais antigo. Pedira (e não pagara) empréstimos aos amigos, parentes, antigos colegas de trabalho e vizinhos. A situação era desesperadora, pois, além de não ter mais a quem pedir socorro, apesar de pequeno, o salário desemprego, que o ajudava a cobrir algumas despesas, estava no fim.
E, conforme esperado, chegou a fase na qual, uma a uma, as contas começaram a ser deixadas de lado. No começo, sem qualquer método, Luiz André, simplesmente, jogava as contas vencidas sobre a mesa e, das de menor valor, ao léu, escolhia aquelas 'que dava para pagar'. Com o tempo, no entanto, o processo deixou de ser aleatório e ganhou método ("Na vida, tudo tem que seguir um método", dizia o velho pai de Luiz André, sem jamais imaginar que, um dia, o raciocínio seria usado pelo filho para organizar o pendura). De uns meses para cá, antes de ganhar a chance de vir a ser paga, a conta passava por uma análise - Luiz André passou a só considerar aquelas cuja inadimplência pudesse implicar no corte de alguma coisa importante. Depois de sequer tocar nos impostos, esquecendo-os no fundo do baú, deixou de pagar carnês e suspendeu o pagamento do pilates de Aninha, da aula de balé e, depois, da escola de Camila. Com a ajuda de amigos (ainda bem que os amigos aparecem nestas horas), instalou um tal 'macaco' para ficar a salvo do corte de energia elétrica e, depois de descobrir como entrar e sair do prédio sem o risco de encontrar o síndico, Luiz André relaxou a taxa de condomínio, que embutia o fornecimento de água, esgoto e gás.
Os dias passaram e as coisas pioraram, num processo que se agravou até estabelecer o caos absoluto.
Na realidade, embora não quisesse admitir nem para si próprio, apesar de o monte de contas vencidas ser enorme e não parar de crescer, aquilo que mais angustiava Luiz André era a possibilidade de, depois de homem feito, precisar voltar a morar com os pais, uma alternativa da qual não teria como escapar se lhe faltasse dinheiro para comprar comida.
Finalmente, Luiz André desistiu de malhar em ferro frio, procurando emprego que não existia, e, como tantos outros, se alistou no exército de desempregados a serviço do Uber. Fez bem, pois, como falavam o ronco das barrigas vazias e a proliferação das placas 'Não há vagas' e das filas nas agências de emprego, não havia outro jeito. Pelo plano combinado com a esposa Aninha, ele ficaria no Uber até a crise passar, ganhando o dinheiro suficiente para comprar comida e fazer uma ou outra despesa. Mas, os dias se arrastaram sem que o aplicativo manifestasse a luz vislumbrada no fim do túnel. Foram dias terríveis. Quando, ouvindo o choro de Aninha diante da geladeira vazia, Luiz André já pensava fazer besteira, chegou o milagre tão esperado. Com o sinal positivo do Uber, estava autorizado a trabalhar. Agora, bastava conduzir passageiros e, nos termos do contrato, esperar uma semana para receber o dinheiro. Quanta alegria!
- E até lá, Luiz André, o quê nós vamos comer? - a pergunta de Aninha jogou um balde de água gelada no entusiasmo do marido, que, percebendo ainda estar longe do milagre esperado e acuado pela realidade, voltou a pensar em fazer besteira. De qualquer jeito, contendo o demônio capaz de levá-lo a fazer coisas das quais pudesse vir a se arrepender, ele saiu de casa disposto ao trabalho honesto e, diga-se de passagem, chegou a fazer algumas corridas, inclusive aquela que livrou sua família da fome naquele dia.
Naquela noite, durante um jantar que não ocorria há tempos, sentado à mesa em festa, empanturrado com sanduíches mistos com queijos importados e fiambre, ovos fritos, iogurte, suco de uva, cereais, leite e, sobretudo, feliz com a felicidade de Aninha e com a alegria da pequena Camila, Luiz André não pode deixar de lembrar do milagre no qual, num lance de sorte e decisão, conseguiu aquela feira tão farta. Alguns talvez até duvidassem, mas, no entender de Luiz André aquilo fora um presente de Deus! Ele recordava que, no final da tarde, ao deixar um cliente no shopping center ValVerde Mall, percebeu um casal que, ao lado de dois carrinhos de compra abarrotados de sacos e mais sacos de mantimentos, evidentemente procurava um transporte. Foi quando, provavelmente inspirado pelo demonizinho que fizera de tudo para sufocar instantes antes, [ele] teve o impulso. Ao invés de acelerar e partir a espera de outro chamado, Luiz André dirigiu o carro até o casal e, com a agilidade possível, abriu o porta-malas.
- Precisamos ser rápidos, pois, aqui, a fiscalização é rigorosa - ato contínuo, voltando ao volante, Luiz André orientou o casal a acomodar a volumosa feira de forma organizada.
- Pronto? – perguntou, olhando pelo retrovisor.
Ao sinal de OK, Luiz André passou a primeira marcha e, arrancando um 'Oh' angustiado do casal, partiu, levando a feira do casal com a comida que alimentaria sua família até regularizar os recebimentos do Uber.
O milagre, finalmente, acontecera.
Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Escritores