TIA FEIA - Capítulo 5 - Sem Colher de Chá

A família de minha mãe é uma família nordestina, católica e conservadora. Isto se deve principalmente pela insistência dos mais velhos, especialmente por parte de tia Celeste que era a principal articuladora do costume pelo tradicional. Admito que esse aspecto autoritário a respeito do costume fez uma família inteira ficar reunida e forte durante muito tempo. Entretanto, foi um verdadeiro impasse quando foi revelado que Filipa estava grávida. Seria uma ótima notícia se ela não tivesse cerca de quinze anos. Eram os anos oitenta e naquela época não era um modelo tradicional uma moça tão jovem e solteira ficar grávida. Eu tinha cerca de dez anos e lembro-me que a minha tradicional família lhe acolheu. A vaidade e tradição foram superadas pela fraternidade e empatia. Mas para mantermos algum costume, organizamos um chá de fraldas, que era nossa forma de ajudar com o enxoval e festejarmos a chegada de mais um membro para a família. Então o chá de fraldas, no tempo certo, foi marcado na casa de tia Raquel, mãe de Filipa.

Era trinta de maio, toda família e amigos foram convidados. Era um domingo ensolarado e todos se mobilizaram e ajudaram de algum jeito. Nesses eventos minha mãe sempre fazia umas tortas de frango, era também outra tradição, a tradição das deliciosas tortinhas de frango! Eu só estava naquela casa com, talvez, quinhentas mulheres, num calor danado e pronto para entrar em combustão, para comer pelo menos uma das tortinhas de frango. A parentalhada e amigos foram chegando, mais e mais mulheres, falando de três, quatro assuntos de uma só vez. A hora passando e cada vez mais abafado. A sala estava cheia e barulhenta, eu estava sentado no chão, entediado, olhando de vez em quando para cozinha, onde minha mãe estava organizando a distribuição dos aperitivos. O maldito costume nos ensinou a sermos educados e esperar para se servir!

Alguns homens estavam na garagem conversando sobre futebol. Tio Rodrigo, prestativo, estava ajudando a colocar alguns enfeites na sala. O clima era bem amistoso e alegre, com flores e enfeites para celebrar a vida. Riam de tudo e faziam brincadeiras. Em determinado momento a mulherada na sala começou a discutir qual seria o nome do bebê:

- Pode ser Marcelo?

- Mas acho que vai ser menina!

- Então Joana, Joana de Souza.

- Não, nada a ver! Se nascer em junho agora , e ainda no dia dezessete, escolhe Beatriz que o nome da minha avó!

- Eu e o Carlos estamos pensando em Paula!

- Não, é muito comum!

- Escolhe Enzo igual o filho daquela atriz lá... Qual o nome?

- Vera Ficha?

- Que Vera Ficha, é Claudia Arraia!

- Vish!!

- Escolhe Michele, é nome americano, é bem chique!

- Você podia juntar o nome dos avós e ficaria Rarcelo ou Marquel!

- Um nome bíblico, Salatiel, foi tataravó de Jesus.

- João Leno, o cantor do Queen!

- Fausto... Eustáquio... Victor!

- Manuela... Fabiana... Benjamim!

- Não isso... Aquilo... Outro... Fulano é melhor...

Enquanto a maioria se divertia com a escolha do nome, uma alma fria se aproximava e não estava nem um pouco contente com aquela gravidez, era tia Celeste, que só estava esperando um motivo para aparecer e mostrar a sua autoridade! Todos se divertiam e riam bastante, um enxame de vozes, volume alto, festa pela para a vida! Mas no meio de tantas vozes uma calou a todas:

- Cês’ são um bando de crianças estupidas! Ninguém pensa no futuro do bebê?! Você ainda nem terminou a escola e já foi de fazer um moleque!!!

Todos olharam para o centro da sala, era ela, Tia Celeste! Como o macho alfa em um rebanho, sua voz de trovão foi ouvida por todos. Um silêncio constrangedor dominou sala, até mesmo a TV se calou com medo. Ela esbravejou:

- E esse menino... Nem trabalha, não sabe fazer nada! Sabe sim! Fazer criança, isso sim esse imprestável sabe! Vocês precisam parar de ser bobocas! Nem casaram ainda e estão com sem-vergonhice, estão em pecado viu mocinhos! Eu já falei com sua mãe Filipa, mas ela desde criança sempre foi sonsa, você já está ficando igual a ela, sonsa e besta!

Minha prima, em estado de choque e constrangida, ficou olhando para o chão, seu namorado, era de fato um boboca e não fez nada. Alguns tios e primos meio que acenavam a cabeça concordando com as palavras de Celeste, que continuou:

- Eu organizei este chá de bebê, não é para fazer festinha pra senhora não! Isso aqui é para te ajudar, ou você acha que sempre vai ter a família pra segurar suas cagadas? Tá ficando moça e burrinha hein! Eu já falei com a Raquel várias vezes, se é a minha filha, meto-lhe a mão que ela só ia sair de casa e casar com quarenta anos! Que Jesus Cristo me perdoe!

Nessa hora, pela primeira vez, uma faísca acendeu meu coração. Tão forte e quente que ao relembrar aquela adrenalina, ainda sinto seus efeitos repercutirem. Como alguém poderia ser tão deselegante e humilhar uma adolescente na frente de todo mundo assim? Então o fogo da justiça queimou meu jovem coração. E é como o ditado diz: Porque semeiam ventos, colherão tempestade!

- Casar com quarenta anos que nem a senhora? Coitada da menina!

Todos olharam surpresos para mim. Eu me vi no centro da fogueira aonde arde mais.

- O que você disse moleque?!

- Eu disse que, pelo menos a Fe não vai precisar fazer macumba para conseguir casar que nem você, velha coroca!

A minha intenção não era fazer graça, eu realmente acreditava que Tia Celeste era algum tipo de feiticeira! A inocência me ajudou no debate, porque assim que esta sentença terminou, todo mundo começou a rir. Ninguém havia pensado nessa possibilidade, foi como se eu tivesse descoberto a pólvora. Tia Celeste desmantelou-se e a chama da raiva lhe dominou!

- Que falta de respeito é esta, rapaz? Vou falar para sua mãe lhe dar uma surra..., MARIA!!!

- Ouvir dizer que Santo Antônio não estava mais aguentando tanta promessa, por isso chutou o santo e apelou pra forças de Satã!

Um vendaval de risadas espontâneas, altas e unânimes seguiam minhas palavras.

- Vou lhe dizer... que.. que. olha aqui.. você... você acha que ..?

Nunca havia acontecido aquilo, tia Celeste gaguejar. Foi realmente o estopim! Então vendo que ela fraquejava, continuei a esquentá-la!

- Fala pra gente aí, qual é o segredo da macumba?

Então tia Celeste, olhou furiosa para seu esposo, que não tinha percebido que sua mulher acabara de ser inflamada!

- Rodrigo você não vai me defender não homem? Vai ficar olhando com essa cara de panaca pra mim?

Após esse ligeiro incentivo, tio Rodrigo percebeu que ele deveria proteger sua donzela. Era necessário defendê-la e retomar sua honra! Então ele disse:

- Minha criança o que você entende de mulheres?

Involuntariamente a sua pergunta foi seu ingresso ao debate. Então aquela sala virou um verdadeiro tribunal. O júri era um amontado de senhoras de meia idade e uma porção de adolescentes. O crime se quer havia sido tipificado, e eu como principal ator da acusação não tinha provas contundentes, por isso me apoiei no uso a lógica e da razão, o argumento? O bonito não ama o feio!

- Tio, eu só entendo de humanos, porque essa baranga aí não podia nem ter CPF!

- Meu filho, tenha respeito!

- Não consegue ver tio que esta bruxa te enfeitiçou? Ó azar

- Você é muito jovem meu filho, não entende nada de casamento e família!

- Que azar! Que azar! Com tantos homens no mundo, a macumba lhe pegou! Oô azar!

O júri, após cada argumento, ria em sinal de credibilidade e concordância. Tia Celeste ficava cada vez mais furiosa, estava a ponto de me enforcar! Seus olhos azuis estavam vermelhos como fogo que ardia naquela sala. Era necessário censurar-me.

- MARIA!! Vem ver o que esse excomungado está causando aqui!

- Pode confessar que você fez macumba, todo mundo aqui já sabe! Meu Deus, que macumba poderosa foi essa?!

- Você não sabe nada sobre o amor rapazinho, ele transforma a vida da gente!

Era Tio Rodrigo em tom de apaziguamento, mas tia Celeste queria um tom mais agressivo! Eu percebi e então coloquei mais lenha.

- Fiquei sabendo que foi macumba das bravas. Algumas duram meses e anos, mas essa é para a vida toda. Ó azar! Ficar condenado a viver com uma pessoa tão tribufu pra toda vida! Oô azar!

- Você não vai falar nada não Rodrigo? Você é um inútil mesmo!

- Calmo amor, é só uma criança, não faça tempestade em copo d’água!

Mas um sujeito oculto, rápido e destruidor como um relâmpago, acertou o coração da minha tia em cheio quando disse:

- Coitado do moço, tão bonito!

Ninguém sabe quem foi, acredito que foi a voz da razão, mas certo é, estava convencido que ninguém em sã consciência conseguiria amar alguém tão feio! Entretanto meu tio falava a verdade. De fato, amava Celeste e não podia fazer nada a não ser usar o que sentia:

- Para mim Celeste é a pessoa mais linda do mundo!

Na maioria das ocasiões em que um homem elogia sua mulher em público, o ato é percebido como romântico e admirável, mas naquela tarde o louvor foi como trova de escárnio. Se antes havia qualquer dúvida sobre a potencialidade de sua feiura, as ondas de risadas espontâneas que seguiram essa frase, era a prova que faltava.

- Está vendo tio, todo mundo aqui acha que ela tem cara de cocô! Você não vê isso porque você está enfeitiçado pela macumba! Ó azar!

Sem se importar com a gozação do público, tio Rodrigo mais firme continuou:

- Os olhos de Celeste são lindos, azuis como o céu, translúcidos como o mar!

- Só se for o mar morto! Coitado está sem juízo nenhum... Ó azar!

Era um debate ganho, todo júri parecia favorável à minha ideia, era uma questão de tempo, mas a minha pequena canoa virou, quando tia Celeste ordenou:

- Bata nesse excomungado!

Tio Rodrigo começou a ficar enfurecido, sua voz aumentou de tom ele esbravejou:

- CALA SUA BOCA MOLEQUE!!

Mas eu criançola continuava minha chuva de insultos:

- Tribufu, tribufu, faz macumba com pena de urubu!

A voz ainda ecoava – “Coitado tão bonito!”. Tia Celeste desesperada ardia de ódio e Tio Rodrigo no meio do incêndio também fervia! Mas eu não precipitava:

- Tribufu, tribufu, faz macumba com pena de urubu!

Tio Rodrigo, suando de ódio posicionou o martelo para me bater: olhou e mirou na minha cabeça, mas antes do homicídio, minha mãe chegou:

- RENATO!! O que está acontecendo aqui?!

- Não mãe! É que a gente tá falando aqui, que o... que o.. oooo... o tio Rodrigo... tá apaixonado... por que fizeram fei... feiti...bruxaria para ele e... eeeeee... precisa desfazer, porque a pena que... que...

- Que raios você tá falando?

Então Tio Rodrigo agora com o semblante angelical e voz mansa fez um discurso bem piegas e cafona:

- Eu estava tentando explicar para o rapaz sobre a força do amor, a força do amor que move cada ser humano. O combustível do amor está no coração! Como diria o poeta “O amor é querer estar preso por vontade”, portanto eu beberia da fonte que me fez se apaixonar por Celeste, mais uma vez. Escolheria me apaixonar por ela exatamente assim, um milhão de vezes! Ficaria preso e daria a minha vida por esse amor. O amor é cego, e o que importa é o que sentimos, o sentimento é o maior! Pois o amor é fogo que arde sem se ver. Ainda que eu tenha todos os dons e saiba toda ciência, sem o amor eu nada serei, e meu amor é você Celeste. Sem você eu nada serei!

Todos aplaudiram o discurso e algumas mulheres até choraram! Era a vitória de Rodrigo! Eu ia tentar replicar, insistir na minha teoria, mas minha mãe abafou o caso, me tirou com um puxão de orelha e pancadas de chinelo. Não comi nenhuma tortinha de frango e ainda tomei uma surra das boas. Grande dia: Fui bancar de justiceiro, mas ainda era marinheiro de primeira viagem, não tive recompensa, e dessa aventura ficou apenas a ressaca e as cinzas.

O tempo pode ser inimigo da memória, mas cada palavra e sentença que tio Rodrigo disse naquele dia voltaram como ondas à praia. O discurso clichê e cafona pode causar algum enjoo aos menos preparados, mas a viagem a este episódio de minha infância se fez necessária, pois novamente Rodrigo faz uma homenagem para sua amada, por isso, voltemos bem na hora do outro discurso, dessa vez, o último discurso.

Continua...

Cristiano Oliveira Santos
Enviado por Cristiano Oliveira Santos em 20/05/2020
Código do texto: T6952570
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