187 - Quarentena
Habituara-se. Acordava e era muito cedo. Voltava a adormecer e despertava com o sol alto a invadir o quarto. Ficava na cama até que a fome o empurrasse para a cozinha. Café e o resto do peixe frito, gelado. Experimentou a broa do começo da semana e sentiu que precisaria de mais fome e outros dentes para a enfrentar. Comeu a alface inteira, folha a folha, como se fosse um grilo gigante. Sentiu o pescoço barbudo, as unhas dos pés a pedir alicate, o frio nas pernas nuas. Arrastou-se para a varanda do seu segundo andar. Há novos melros e as árvores balançam uma brisa leve. Viu o carteiro bater palmas e a vizinha recolher as cartas que trouxera. A si nunca mais ninguém escrevera. Melhor assim. Agora namorava pela net, via filmes para matar o tempo, brigava com a outra metade de si e dormia. – Logo recomeço o trabalho e conferirei as listas, os endereços, farei as contas, enviarei os resultados, ligarei ao chefe para fazer uma ou outra pergunta desnecessária. Importa dizer que não morri.