Manjericão -1983.
Eu detesto os meus vizinhos.
Eles falam sobre a vida de todo mundo.
Eles conhecem a vida de todo mundo.
Eles fazem fofoca sobre todo mundo.
Eles falam alto demais quando quero silêncio.
A Dona Regina grita todo dia pelo sobrinho que é vizinho dela. Ele é traficante. Ele também é gente boa, mas arruma confusão no pique Leônidas.
Esses dias ele levou uma garrafada no olho direito. Atualmente e por enquanto, não enxerga nada.
Ele não tem o olho esquerdo. Perdeu o outro de bobeira. Foi jogar uma bolinha de gude na parede. Ela trincou e com uma semi-ponta voltou direto no olho. O olho ainda tava la. O que ele perdeu foi a conexão da retina com o epitélio pigmentado.
Retina é uma palavra engraçada.
Me lembra cretina.
De frente pra casa dele mora a Isabel. Velha chata.
Me pergunto se quando jovem era igualmente chata.
Pergunta de todo mundo pra todo mundo e responde de todo mundo pra todo mundo.
Ela é chata e cadeirante.
Faz oito meses que envio secretamente um livro por mês pra ela pelos Correios. Penso que, talvez assim, ela saia da janela e se distraia com algo útil.
Ela é cadeirante. O que não justifica ficar encocorada na janela cuidando da vida alheia.
Encocorada é uma palavra engraçada. Eu nem sei se existe, mas gosto dela.
O que me faz lembrar do Seo Lisberto. Ele vendia côco na praia. Ele diz que la ele era feliz. Veio pra ca e só disgraça aconteceu. Deixou a vida de Aquaman pra viver com uma jovem. Ela morreu no primeiro mês. Ele foi demitido do emprego novo dois meses depois. Isso por conta do ex-namorado da garota ser um dos supervisores da empresa. Seo Lisberto então foi vender côco geladinho na porta do estádio. Deu azar de no primeiro dia ser dia de clássico. Deu azar no encontro de torcidas. Deu azar de ao tentar correr com o carrinho de côco, esbarrar num PM. Seo Lisberto deu azar de não ser à prova de cassetete na costela e cabeça. Deu azar de seu carrinho de côco ser feito de madeira e facilmente desmontado. E que azar foi quando as torcidas perceberam e desfizeram o carrinho em pedaços de madeira que usaram para se atacar. Que azar. Que desgraçamento. Um fotógrafo fez registros de antes do confronto. Nelas, Seo Lisberto abraçava Curicí. O sobrinho de Dona Regina e traficante. O fotógrafo não perdeu o foco também quando o Curicí foi o primeiro a tirar uma estaca de madeira que desprendeu do carrinho e com ela esmagou o crânio dum torcedor do outro time e no segundo seguinte levou uma garrafada no olho.
Seo Lisberto demaiou. Acordou sendo muito bem tratado por alguém familiar. Num delírio, Seo Lisberto viu na enfermeira a semelhança com a ex-companheira falecida. Alguns meses de prisão e já em liberdade após a inocência declarada, Seo Lisberto se casou com a enfermeira. Um dos presentes que mais gostou foi o de um carrinho de côco novinho, ultra moderno e bem maior do que o anterior. Ele nunca mais vendeu côco. O carrinho ficou num canto nos fundos do quintal. No oitavo mês de casamento, o bairro todo acordou com a ainda enfermeira aos berros.
Gritava: "SOCORRO, SOCORRO, O FILHO DA PUTA ME ROUBOU. AQUELE VELHO ME ROUBOU E FUGIU. ME AJUDEM, PELO AMOR DE DEUS, ALGUÉM VAI ATRÁS..."
Ela chorava. Alguns minutos depois, num terreno baldio, alguns moradores tacavam fogo no carrinho de côco nunca usado. A casa do Seo Lisberto foi saqueada. A regra era simples: No nosso bairro, ninguém rouba, ninguém mata ninguém. Seo Lisberto decepcionou a todos.
O bairro todo se compadeceu com a donzela abandonada. Uma boa quantia foi arrecadada para a moça. Os traficantes do bairro foram de casa em casa, gentilmente pedindo uma contribuição para a pobre moça. Todos doaram algum. Gosto de pensar que no bairro, apesar de fofoqueiros, todos são gentis e caridosos e que as armas que os traficantes empunhavam não tinham nada a ver com isso.
A enfermeira deixou o bairro algumas horas depois. Todos a desejaram felicidades.
O que se sabia era que Seo Lisberto havia ganho uma boa quantia de indenização pelo espancamento que sofreu do PM na frente do estádio e pelos meses de prisão. Disseram que ele teria voltado pra praia. Qual praia não se sabe. O que se soube algumas horas depois naquela mesma manhã, foi do jornal na tv mostrar um acidente de carro terrível. Eram três pedaços de metade de três carros numa rodovia. Um pedaço branco, um pedaço preto, um pedaço verde limão. Tudo o que se pôde ver saindo de um deles foi um tecido branco espalhado pela rodovia. Parecia ser um vestido de noiva. Logo, o murmurinho chegou. Como sempre, de boca a boca. Era ela. Era o carro dela. A enfermeira já não existia. Próximo ao carro branco, um dos policiais que atendeu a ocorrência se pos a ler a última página de um diário levemente chamuscado.
"Ele não sofreu. A quantidade de anestesia paralisante que tinha no organismo não o possibilitava dizer ou sentir nada. Mas, tava vivo ainda quando aquele bando de otários queimavam o carrinho de côco com ele dentro sem nem saber. Com a grana dele e a mixaria que me arrecadaram, da pra sumir por um bom tempo. E apes..."
Não havia continuação. Talvez estivesse escrevendo enquanto dirigia. Mesmo que houvesse, o policial não teria lido. Fechou o diário e correu para a viatura.
No bairro do Manjericão, três crianças brincavam de bolinha de gude. O terreno afastado da rua, baldio e de terra possibilitava a brincadeira e uma das crianças correu tentando alcançar uma bolinha. Teve dificuldades de pegar debaixo daquela caixa estranha, retorcida e queimada e quando finalmente alcanço, esbarrou um dos ombros no trombolho queimado e uma mão carbonizada o segurou pelo ombro. Na entrada do terreno, um carro da polícia estacionou.
EPÍLOGO:
Dona Regina, do portão de casa conversava gritando Dona Isabel que respondia de sua janela do outro lado da rua.
- Ô BEL...TÔ TÃO FELIZ...MEU FI VEM HOJE. VAI SAÍ HOJE. JA DEVE TA É VINDO. FIZ ATÉ UM BOLIN, DEPOIS LEVO AÍ PRA SENHORA, VIU?
Dona Isabel, que sentada rente a janela com um livro aberto sobre as pernas, assistia ao telejornal, não parecia tão empolgada com a volta do vizinho Caolho. Resolveu curiar.
- Reginá, qualé mesmo a cor do carro que foi buscá ele?
- Ué, é o nosso memo, o fusquinha verde limão. Ele ama aquele carro. - Disse Dona Regina muito empolgada e sorridente
- Posso te contá uma coisa?
FIM.