A repentina partida de Floro Abdias
A repentina partida de Floro Abdias
Alexandre Santos*
Naquela noite, ao tempo que, na Associação Comercial de Nossa Senhora de ValVerde, em reunião presidida por Antero Souza, o empresário Júlio Epaminondas contava aos pares como reduzira custos e, apesar da situação, vinha mantendo receita líquida positiva, o antigo gerente Floro Abdias contava à esposa AnaCláudia que, mesmo garantindo lucros em tempos de crise, fora demitido por Júlio Epaminondas.
A conversa com, o agora ex-patrão e ex-amigo, Júlio Epaminondas, no final do expediente, fora uma ducha de água fria nos projetos e na autoestima de Floro, especialmente porque, com quase dez anos de casa, se considerava homem de confiança dos proprietários e responsável pelo crescimento da empresa nos últimos anos. Se agora a empresa enfrentava dificuldades, não era por culpa dele e, sim da crise que assolava o País (em nenhum momento, nem mesmo para si próprio, Floro associava o desempenho da empresa à situação geral da economia, crescendo por ocasião da afluência, como ocorrera por quase uma década, e se desmilinguindo por ocasião das crises, como ocorria agora, - Floro estava convicto de que o crescimento da empresa se devia a ele próprio e a debacle [da empresa] se devia à crise). Talvez não fosse boa hora para certas recordações, mas, Floro não podia deixar de lembrar, nos últimos dois meses, seguindo a orientação do patrão, sem qualquer escrúpulo ou arrependimento (afinal de contas, cumpria ordens), tinha feito muito 'serviço sujo', demitindo gente antiga na casa, cortado os custos que julgava dispensáveis, inclusive o cafezinho, a jardinagem semanal, brindes aos clientes, prêmios aos funcionários, embalagens personalizadas e muito mais. Tendo sido capataz eficiente, Floro não esperava que, um dia, chegasse a hora de a 'cabra comer o seu cartão'. Mas, ele estava enganado. Usando o lenga-lenga usado por ele próprio quando demitia colegas, Epaminondas falou da crise e, dando a estocada final, arrematou o chavão que 'infelizmente, com o coração apertado, era forçado a demiti-lo, pois a empresa não tinha como suportar os salários mais altos'.
Experiente e de raciocínio rápido, poucos segundos após saber da demissão, Floro concluiu que, somando as verbas rescisórias com a poupança amealhada nos tempos das vacas gordas, se não surgisse qualquer imprevisto, depois de cobrir o cheque especial, pagar os cartões de crédito e pagar o IPTU do apartamento e os IPVAs dos carros, tinha como manter o padrão de vida por mais uns quatro meses e, se cortasse as despesas supérfluas, conseguiria aguentar uns seis meses. Era o prazo que tinha para arrumar outro emprego.
Na sala do confortável apartamento de cobertura, com vista do mar e quatro suítes, adquirido há pouco mais de cinco anos com financiamento da Caixa Econômica, AnaCláudia estatelou. Ela não esperava aquilo.
Com a atenção momentaneamente desviada do noticiário - estranhamente esquecido das coisas ditas até a véspera, o jornalista-âncora reconfigurava a narrativa da crise e, como se o PT não existisse, denunciava um tal CustoBrasil como grande vilão da economia brasileira -, AnaCláudia ouviu a novidade trazida pelo marido estarrecida e, como acontece nas novelas, não teve como conter lágrimas de preocupação. De tão surpresa, ao invés de esculachar a carga tributária e os direitos trabalhistas e sociais responsáveis pelo CustoBrasil (como, seguindo a onda soprada pela mídia, faria se não tivesse ocorrido o cataclismo), AnaCláudia entrou numa espécie de transe. Naqueles instantes de ausência, ela não conseguiu pensar em nada, sequer nas comodidades e futilidades que marcavam a boa vida de classe média alta levada pelo casal. Pouco a pouco de volta à realidade, no entanto, ainda sem confrontar o marido, AnaCláudia lembrou da evolução social dos últimos anos, quando puderam comprar o apartamento, refinar o bom gosto, fazer viagens internacionais, sustentar os filhos em faculdades particulares, trocar os carros da família a cada ano, manter um plano de saúde superior, renovar o guarda roupa regularmente, frequentar os melhores restaurantes, degustar os melhores vinhos e queijos, manter duas diaristas ('como tinha ficado difícil arrumar empregada doméstica depois do PT', pensou ela, num lampejo dentro do devaneio). E, tudo, pensou AnaCláudia, conquistado pelos próprios méritos do marido, que nunca precisou de nenhuma ajuda 'daquele governo corrupto'.
- E agora, Floro? - AnaCláudia conseguiu balbuciar com a voz sumida, depois do lapso em completo silêncio.
- Não se preocupe. Deixe que eu cuido disso - mantendo a pose de marido provedor, Floro tranquilizou a esposa, poupando-a, inclusive da informação de que as reservas da família se esgotariam em quatro meses.
Como prontamente denunciaram os olhos vermelhos e as olheiras profundas na manhã seguinte, AnaCláudia e Floro não conseguiram dormir naquela noite. De fato, procurando fazer jus à fama de gerente competente, [Floro], enfrentando airosamente o sono, que, vez por outra, tentava curvar a excitação, Floro Abdias alinhavou um plano de emergência, incluindo lista de empresas para as quais deveria enviar currículo e despesas supérfluas que deveriam ser imediatamente suspensas - adeus à viagem de férias já programada e planos para troca de carro e compra de uma casa de praia. De sua parte, fustigada por pesadelos, AnaCláudia atravessou a noite virando para lá e para cá na cama king-sise, amanhecendo com o corpo doído e a sensação de não ter conciliado o sono por um instante sequer. Conhecendo o marido, ela sabia que, provavelmente, para não aperreá-la, Floro dourara a pílula para fazer a situação parecer menos feia do que, de fato, era.
No café da manhã, sem a pressa usual nos dias normais (não havia porque correr se não havia lugar para ir), por alguns instantes, AnaCláudia e Floro tentaram fingir para si próprios que aquele era um dia como outro qualquer, mas, logo, sem ter como fugir do assunto indefinidamente, o tema tabu veio à tona:
-E agora? O que vamos fazer? - embora disfarçado, o desespero era sincero.
Floro trancou-se na saleta decorada à guisa de escritório e, horas mais tarde, depois de escanear cuidadosamente a memória, a agenda e o mailling empresarial, peneirando o network construído ao longo da vida para separar os que se mantinham no mercado daqueles já tragados pela crise, [Floro] tinha a lista das pessoas e empresas que, se Deus quisesse, poderiam resgatá-lo daquela situação, dando-lhe a chance de recomeçar a vida profissional. Era hora de usar o telefone e o computador.
Foram muitas tentativas, muitas decepções. Floro terminou o 'expediente' do primeiro dia de desempregado completamente desanimado e sem esperanças.
Emolduradas por muitas versões da crise, além de deixar claro que a recessão estava longe de acabar, as conversas continham mensagens que lhe eram particularmente preocupantes. De fato, apreciando o mosaico formado pelo conjunto das conversas, Floro constatou que - fosse porque proprietários absorveram funções gerenciais ou [porque] empresas reestruturaram organogramas - muitos postos executivos deixaram de existir ou perderam importância (e, consequentemente, prestígio salarial). A lógica cruel dizia que a supressão de postos executivos significava, não só empregos a menos no mercado de trabalho, mas, também, desempregados a mais na disputa pelos postos remanescentes, num processo que recrudescia à medida que a crise avançava. Esta combinação [número crescente de executivos demitidos com a permanência da onda recessiva que continuava a demitir outros] diminuía ainda mais as chances de Floro, especialmente na faixa salarial que ele desejava. Ao final da jornada, em seu imaginário, Floro imaginou-se desafiado por uma muralha revestida de placas 'não há vagas'.
Os dias passaram ... e nada. Junto com o afastamento de pessoas que julgava amigas e com telefonemas não atendidos, nenhuma resposta às dezenas de currículos encaminhados, nenhum convite para entrevistas. Pouco a pouco, o abandono começou a solapar a altivez e a segurança como Floro enfrentava o desemprego. Como diriam os psicólogos, submetido àquela pressão, seria uma questão de tempo até surgirem a 'flor da pele', o 'pavio curto', a irritação e outros sintomas próprios das crises (os quais, se não tratados convenientemente, poderiam levá-lo à depressão). Não era para menos, embora tentasse manter o otimismo, Floro sentia a situação piorar. De fato, contrariando o discurso do 'basta tirar a bruxa e o PT' para a situação melhorar, o sentimento auscultado pelas caixas registradoras dizia que a crise se aprofundava, afastando, cada vez mais, a chance de emprego que Floro tanto precisava. Já desesperado, Floro alterou os planos iniciais, reduzindo a faixa salarial desejada (nos currículos, ele substituiu o valor pretendido por um 'salário a combinar' genérico) e passou a oferecer-se também como 'consultor independente'. Nem assim a situação melhorou. Floro continuou desempregado, cumprindo a rotina diária de desempregado.
E, embora tivesse feito de tudo para poupar a família das angústias que o atormentavam, já sem controlar o desespero e o mau humor que o tornava irritadiço (e que, claro, direta ou indiretamente, contaminava a família), especialmente porque a persistência do desemprego, no entanto, em nada diminuía as necessidades da família, chegou o dia de Floro conversar com AnaCláudia sobre o assunto.
- Vamos precisar cortar despesas, AnaCláudia - concluiu Floro com os olhos marejados, depois de um introito quase desnecessário. A lista do corte era grande e começava pela eliminação das saídas do casal (que já tinham sido reduzidas a uma por mês), falava da dispensa das diaristas, na venda de um dos carros, na mudança de plano de saúde, numa revisão drástica do rol de compras do supermercado (que, na prática, isso significava o abandono de muitos dos hábitos refinados adquiridos nos tempos das vacas gordas, com expurgo de produtos de luxo e supérfluos), o fim dos jantares de dez ou doze talheres para degustação de quitutes sofisticados, redução das idas ao salão de beleza, cancelamento do contrato da TV fechada e de internet, redução da conta do telefone, etc., etc.
Como em muitos outros casos, o liseu não se instalou impune.
Confirmando o provérbio popular de que, em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão, a degradação do padrão de vida, com impossibilidade de fazerem compras e se fazerem chiques, terminou por causar baixas. Aos poucos, Floro deixou afluir um lado ranzinza e AnaCláudia desenvolveu um mal humor que, dando lugar a rusgas e discussões inéditas, quebraram a harmonia do casal. Vale dizer que, pelo menos no início, como se fosse uma espécie de provação ou, quem sabe, paradigma de normalidade da vida em comunidade, a desarmonia não quebrou a estabilidade do casal, que, mesmo às turras (talvez por falta de alternativa), lutou para sobreviver ao furacão que os abatera.
Diante da dèblâcle, contrafeita, mas sem alternativas, AnaCláudia aceitou as restrições e, sentindo a impotência de Floro para superar a situação, também se dispôs a procurar emprego. Mas não estava fácil para ninguém. Se Floro, um executivo experimentado e bem relacionado, não encontrava emprego, imagine AnaCláudia, uma jovem senhora, que nunca exercera a profissão e, nos últimos anos, tinha se dedicado exclusivamente ao Lar (tendo a culinária e a literatura como hobbies) e à doce vida de dondoca. De qualquer forma, foi através da culinária de AnaCláudia que a família descobriu um caminho de contornar a crise e ganhar o pão de todo dia. De fato, após um período amargando os mesmos 'nãos' que desmoralizavam o marido, AnaCláudia resolveu ganhar dinheiro com seus dotes e conhecimentos gastronômicos e passou a cozinhar para fora, vendendo guloseimas, salgados, doces, bolos e congelados. A iniciativa deu certo e, em poucos dias, estabeleceu uma pequeno e lucrativo negócio. Sem pagar impostos, funcionando no próprio apartamento e usando o gás pago pelo condomínio, a cozinha de AnaCláudia era um bom negócio. Sabiam que, com aquela crise, eles não ficariam ricos, mas, pelo menos, pagariam as contas e já não corriam o risco de passar fome. Sem mais procurar emprego, Floro assumiu aquilo que, mantendo o orgulho, ele chamava de 'área logística da empresa' e, torcendo para não encontrar os velhos amigos, fazia a compra dos ingredientes e [fazia] a entrega das encomendas.
De uma hora para outra, de marido provedor, Floro se viu reduzido à condição de mero auxiliar da esposa AnaCláudia (que, passando a pagar as contas, na prática - Floro foi forçado a reconhecer -, mesmo sendo mulher, assumiu a condição de chefe da família). Aquilo não fez bem a ele. Filho da tradição conservadora machista e misógina de Nossa Senhora ValVerde, Floro não aceitou a mudança e, com o ego ferido, sentindo-se humilhado, [Floro] passou a desleixar responsabilidades e a cair na mesmice da conversa e da cerveja do meio da tarde em mesa de bar, costumes que ele sempre condenara, associando-o [o costume] aos malandros e fracassados. Aquilo terminou por minar as bases de um casamento feliz. De fato, como esperado (em fenômeno que se repetia em muitos outros lares pelo País), o casamento de AnaCláudia e Floro, que fora tão sólido, entrou em crise. De um lado, decepcionada com a figura degradada do marido, a mulher descobriu que podia passar sem ele e libertou-se da semiescravidão seguida desde o casamento. De outro [lado], abatido com a progressiva perda da autoridade de macho (segundo ele percebia, o resquício de poder que ainda preservava decorria da condescendência da esposa, que, provavelmente, para não humilhá-lo em demasia, fingia obedecê-lo nas questões menores), Floro não teve forças para resistir à depressão avassaladora que o tomava por inteiro. E, sem dinheiro sequer para o combustível do carro, Floro - que, um dia, fora respeitado profissional, gerente plenipotenciário da Pilgrimm, uma das mais prósperas empresas da região, marido e pai extremoso, patrão severo, homem elegante, generoso na oferta de donativos para a igreja e de esmolas para os miseráveis nas ruas - ruiu.
Contrastando com a longa penitência, o desfecho foi rápido.
Depois de momentos ensimesmado, com o olhar fixado num infinito progressivamente mais distante, debruçado no parapeito da varanda panorâmica do apartamento de cobertura no melhor bairro de Nossa Senhora do ValVerde, acossado pela vaga lembrança de uma pilha de contas vencidas e remoendo a ginástica diária para driblar o síndico e não precisar inventar desculpas para o atraso das taxas de condomínio, Floro decidiu por fim àquela vida de sofrimentos e de humilhações. Não foi numa viagem internacional ou na renovação do guarda-roupa que ele pensou quando ganhou o alívio ao despencar para a morte 40 metros abaixo. Instantes mais tarde, com o corpo esparramado em meio a uma poça de sangue, embora espalhasse dor e insegurança entre os seus, Floro não mais precisava mais enfrentar as necessidades e os constrangimentos trazidos pela crise econômica da qual, segundo pensava, fora a maior vítima.
No dia seguinte, ao lado de outros igualmente tragados pelas circunstâncias, depois de curto velório, sob o testemunho da viúva chorosa e de filhos, parentes, vizinhos, amigos, clientes e colegas, o corpo de Floro foi sepultado no cemitério de Nossa Senhora de ValVerde, passando a fazer parte de estatísticas frias, incapazes de retratar a enormidade de gestos como aquele.
Apressados para voltar aos afazeres, poucos notaram, mas, a cada pá de terra estéril jogada pelo coveiro, junto com Floro, também eram enterrados os sonhos de um homem que queria apenas prosperar e ser feliz ao lado dos seus.
Floro nunca soube, mas [ele] foi apenas uma das incontáveis vítimas anônimas do modelo econômico que, como remédio para as crises por ele mesmo provocadas, usa medidas que a recrudescem [a crise], empobrecendo a todos, arrastando milhares para a vala da miséria, espalhando morte e sofrimento.
(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural