Boa intenção

... "Êta dureza danada!... Que calor!... Só recebo pedras!... Bando de ladrão!" Deparei-me com uma idosa sentada no passeio público à porta de uma agência bancária. Tinha a voz mastigada, tal e qual a banana de casca escura e já passada, que degustava, sua boca, e usava um vestido rodado e surrado que cobria suas pernas cruzadas. Ali marcava seu ponto todo dia, e pedia aos passantes.

"Não tenho nem geladeira!".... Reclamou ela. Alguém lhe dera um litro de leite. "Moço!... Moço!... Me dá um trocado!" Me implorou sua voz. "Não precisa..!" Rebateu um transeunte que a observava. "A conheço bem... É aposentada!"

Os pedintes das ruas, das praças, no trânsito batendo nas portas dos carros, os vemos todos os dias, mas o gesto rotineiro daquela senhora de idade que se deparou à minha frente, me aliciou a aceitá-la com menos absurdez. Não era apenas mais uma pessoa das ruas, mas uma criatura possivelmente, sabe-se lá, traumatizada... Estressada, certamente, o seu jeito aborrecido de como estirou o braço e a concha da mão quase fechada ao pedir esmolas, demonstrava isso. O outro, à resposta que não lhe dizia respeito, adentrou como testemunha de acusação da pobre coitada. Ele me olhava com olhos graúdos, como que me alertando contra uma espertalhona. A bem da verdade, de repente confundia-me aquele pedido meio de lamentação e um olhar não muito sincero, não sei bem se me faço entender, mas aquele olhar que exigia-me uma resposta rápida. No entanto, a continuar com seu advogado de acusação, passei a defendê-la. Irmão , nós temos o que lhe falta, geladeira, emprego, trabalho, saúde, moradia ou se não, alguma coisa disso tudo, e no entanto, nunca estamos satisfeitos . "É diferente". Retrucou. E por quê?!... Por que não sentamos no chão das praças, nas portas dos teatros, na frente dos supermercados?! Insisti. "Ah... meu amigo, temos brio, somos diferentes, sim". Insistiu, ele. E não terá sido sucumbido o seu brio em decepções passadas que possa ter vivido?! Não terá, ela, uma bela história para contar, à qual tenha sido traída por um infortúnio da vida?! Advoguei bem. E não será que um desamor ou uma perda... Virei-me de lado e já não mais o vi.

De fato, aquela idosa se sentia deveras injustiçada. O seu olhar frio e que me confundiu, poderia ser o desespero, a descrença nas pessoas... "Bando de ladrão", naquele desabafo, apontava para os que roubam a dignidade e boa fé das pessoas, especialmente as mais humildes e desinstruídas, lhes deixando apenas o descaso e o desengano como adjutório. Sejam eles no atendimento popular, na assistência a dependentes químicos, nos poucos e capengos abrigos para acolhimento dos idosos em situação de rua etc. Pensativo, retirei-me com aquilo me martelando a nuca... "Só recebo pedras... pedras." E concluí que o mundo está cheio de pedras disfarçadas nas boas intenções... na verdade, em corações de pedra. Os valores da vida , da família, o respeito aos mais velhos, o sorriso e o abraço aos mais carentes, estão em desuso e tende a piorar. As pessoas desaprenderam a estirar a mão aos que precisam. É... restou-me seguir o meu caminho cabisbaixo, pensativo e bem intencionado. E lá na frente me dei conta, não havia dado nada à idosa.

HELDER C ROCHA
Enviado por HELDER C ROCHA em 16/05/2020
Reeditado em 10/11/2024
Código do texto: T6949073
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