A lição do quartel
A lição do quartel
Alexandre Santos (*)
Antunes e seu grupo estavam em êxtase.
O desabastecimento decorrente da greve nacional dos caminhoneiros em maio de 2018 criara a comoção popular necessária para a estocada final no governo. Finalmente, os intervencionistas - como ele e seus companheiros se auto intitulavam por defender a intervenção militar como forma de purificar a política daquilo que chamavam de 'vícios naturais dos civis', a quem atribuíam características como desonestidade, preguiça e corrupção - teriam a chance de, conforme diziam palavras-de-ordem do movimento, 'derrubar o governo comunista e colocar os militares no poder'. O plano distribuído pelo comando nacional dos Intervencionistas no segundo dia da paralisação rodoviária era simples: lá pelo quinto ou sexto dia da greve, aproveitando o apoio das pessoas (para as quais, o álcool, a gasolina e o gás de cozinha também estavam na pauta dos caminhoneiros) e a farta cobertura da mídia, por todo o País, os grupos deveriam se dirigir às unidades militares, onde - nas proximidades do portão das armas, na entrada dos quarteis, em posição que oferecesse ângulo para a tomada de imagens para os jornais e telejornais, com enquadramento de guaritas e cancelas - os militantes deveriam se ajoelhar e, de mãos dadas, rezar, pedindo a proteção de Deus para a intervenção militar no Brasil.
A mensagem vinda pelo zapp era suficiente. Nos termos dos compromissos assumidos na cerimônia de iniciação e nos filmes recomendados pela coordenação nacional, a regra máxima do movimento era 'Ordem recebida, Ordem cumprida'. Não havia o quê discutir. Agora, era reunir o grupo e cumprir a ordem superior. 'Disciplina e hierarquia', Antunes lembrava das palavras mágicas que, segundo os líderes intervencionistas, deveriam nortear a sociedade.
No meio da tarde, a exemplo daquilo que ocorreu em outras partes do País, Antunes e seu grupo - uns dez rapazes e outras tantas moças - se dirigiu à Praça da Bandeira, diante do 21º Batalhão de Engenharia de Combate e, de pronto, sem a necessidade de qualquer preparativo, começou a ação. Os intervencionistas se ajoelharam e, olhos cerrados em compenetração extrema, de braços ativos, vezes levantados aos céus, vezes ligados aos vizinhos com as mãos dadas, começaram a rezar, pedindo a intercessão de Deus pela intervenção militar no Brasil. Aquele era um momento ímpar da militância intervencionista, um momento que, para deixar lembranças pelo resto da vida, deveria ser exercido e desfrutado com fervor.
Deus devia estar protegendo o movimento intervencionista, pois, antes do primeiro terço, a cancela se ergueu e, do portão principal do quartel, saíram soldados, que, após formar um dispositivo de honra e de segurança, acolheram um jovem oficial. A ação foi rápida e objetiva. Depois de retrucar a saudação dos praças com uma continência displicente, o oficial-de-dia se dirigiu aos intervencionistas com rigor.
- Que palhaçada é esta? Quem está no comando? - a voz habituada ao comando não exalava qualquer simpatia.
Passado o impacto inicial, Antunes compôs um dispositivo meio capenga com seus 'guerreiros' e, com um arremedo de continência, apresentou-se
- Meu nome é Antunes, oficial. Passo ao seu comando o nosso contingente patriota - e, em rápidas palavras, tentou explicar que, a exemplo de boa parte da sociedade brasileira, o seu pessoal queria a intervenção das forças armadas 'para moralizar a política do Pais', a começar pela destituição do presidente da república - aquele corrupto e ladrão - completou Antunes.
O quê Antunes não sabia é que, vindo da novíssima turma da Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN), como a maioria dos camaradas, o jovem Tenente Souza Pargo era oriundo da classe média baixa e - como a maior parte da população brasileira - era beneficiário direto e agradecido da ação social dos governos ora satanizados pelos conservadores. Além disso, pouca gente sabia, Souza Pargo tinha entrado para a caserna por conta da paixão que sua namorada da época tinha por homens fardados. Na realidade, se não tivesse seguido a carreira militar, muito provavelmente, Souza Pargo estaria à frente de algum dos grupos que clamavam o ForaTemer ou o LulaLivre tão em voga nas pessoas da sua geração. O tenente estava enfezado, pois aquele tipo de atitude submissa e alienada afrontava o modo altivo inculcado pela AMAN nos cadetes. E, tentando se controlar, o tenente teve vontade de aplicar, ali mesmo, um corretivo naquele pessoal.
- Os senhores estão presos com base na Lei de Segurança Nacional. - o tenente disse ao pessoal de Antunes e, ato contínuo, já voltando para o quartel, comandou à tropa - Recolham estes vagabundos.
- O senhor não está entendendo... - Antunes ainda tentou ponderar (falando para ninguém, pois, excetuando os seus companheiros, ninguém o ouvia), fingindo não ver a coronhada que abriu o supercílio de um dos seus, nem os fuzis apontados para os demais, enquanto, como se fosse um marginal qualquer, era brutalmente empurrado (com um sopapo ou outro, conforme a sensação de resistência) pelos soldados para o interior do quartel.
Na sequência, já na área aquartelada - depois de exigir silêncio total e, com um único grito, calar resquícios de xororô, especialmente das intervencionistas que ousavam desrespeitar a sua ordem cochichando sobre 'direitos', 'constituição' e, no entender dos milicos, outras bobagens -, seguindo o Manual de Procedimentos, o tenente Souza Pargo separou homens e mulheres e, tratando civis como se militares fossem, mandou recolher os manifestantes assustados à carceragem do corpo da guarda.
A surpresa dos intervencionistas aumentou, pois, ao contrário das homenagens que esperavam receber, veio mais cacête. Os dez homens foram amontoados num alojamento projetado para oito soldados e as dez mulheres [foram amontoadas] num outro [alojamento] projetado para seis [soldadas]. As luzes foram apagadas pouco depois com o aviso de que, por razões de segurança, o toque de recolher fora antecipado e era "hora de dormir". Para os intervencionistas, quase todos 'filhos de papai', a detenção era um pequeno inferno - além do medo e da insegurança próprios do confinamento, à proibição de conversas se somou o escuro, o calor, as muriçocas, a precariedade e desconforto das instalações, cujo mobiliário, isento de televisão e geladeira, se resumia às camas-beliche. Alí não havia sequer água para beber. Colhidos pelo rigor cobrado pela vida militar, os intervencionistas ficaram revoltados com o tratamento que lhes foi dado pelo oficial-de-dia. Proibidos de falar, à boca miúda e olhando de lado, em cada uma das celas improvisadas foram vociferados insultos ao tenente oficial-de-dia:
- Como é que um homem destes pode usar a farda verde-oliva? - sussurrou Antunes, sentindo o ardor das escoriações pelo corpo.
- Está na cara que este tenente é um comuna infiltrado - alguém falou baixinho.
- O deus desse tenente é vermelho - disse outro.
- Silêncio! - repreendeu o soldado-carcereiro, voltando a calar os intervencionistas.
Pouco a pouco, dobrados pelo cansaço, os intervencionistas encurtaram os períodos de vigília e alongaram os cochilos e, por instantes, chegaram a dormir profundamente. Mas, o repouso não era duradouro, pois, numa rotina repetida a cada duas horas, a guarda era mobilizada para a troca de sentinelas, produzindo ruídos que os acordava impiedosamente. Para alguns daqueles intervencionistas, aquela foi a pior noite das suas vidas.
Finalmente, às cinco em meia, veio a Alvorada. O toque, soprado pelo corneteiro ao pé do mastro nacional fincado a poucos metros do corpo da guarda e reforçado pela sirene estridente que ecoou por todo o quartel, despertou os intervencionistas, iniciando uma nova fase do sofrimento. De fato, sem qualquer informação sobre a dinâmica interna do Exército, ainda recolhidos ao cárcere, sentindo o tempo se arrastar ao embalo dos gritos da ordem-unida aplicada aos recrutas, os detidos experimentaram novos momentos de incerteza e sofrimento. Os minutos passavam e, sem qualquer sinal de liberdade à vista, amargando a fome deixada por quase doze horas de jejum, os intervencionistas já pensavam em quebrar o voto de silêncio e iniciar algum tipo de protesto, quando a angústia ganhou novo capítulo:
- Seeentido! - comandou uma voz desconhecida - Apreseentaaar ârmas!
O som do vigoroso e ritmado manuseio dos fuzis indicava a chegada de alguma autoridade. "Estamos salvos", pensou Antunes, com um arfar de alívio. Mas, não foi bem assim. Segundos mais tarde, depois de arrancados dos alojamentos aos gritos, um soldado dispôs os intervencionistas em duas colunas organizadas por sexo e altura e, pouco preocupado se seria entendido, comandou:
- Seentido! Direeita, voolver!
Os intervencionistas ensaiaram a coreografia que lhes pareceu mais apropriada. Em seguida, satisfeito com a arrumação obtida à base de rosnados, delicados chutes e paparotes, o soldado os apresentou ao tenente que deixava o serviço-de-dia.
- Tenente, apresento o contingente de detidos.
Só, então, com algum medo, Antunes e os outros atentaram para a condição que lhes foi dada por aqueles, até então, considerados seus heróis. 'Detidos'. Isto é o quê eles eram. Meros 'detidos'.
- Ordinário, marche! - e, sem qualquer saudação matinal, os intervencionistas, já arrependidos da atividade da véspera, escoltados por soldados armados, foram conduzidos ao bloco do comando, onde, na posição de sentido, esperaram mais cinco minutos.
- Pronto, senhor Coronel. Aí está o contingente de malucos que, ontem à tardinha, tentou perturbar a tranquilidade do quartel - disse o tenente ao comandante.
O coronel olhou grupo de intervencionistas de cima à baixo.
- Vocês estão pensando o quê? Já estudaram história? Já leram a Constituição do País? Sabem, pelo menos, a função das Forças Armadas? Para o seu governo, a nossa função é garantir a Defesa Nacional e, não servir de joguete a serviço de grupos golpistas... Ainda não sei o que fazer com vocês. Se não fosse o Estado de Direito que jurei defender, mandaria fuzilar vocês agora mesmo. De qualquer forma, estou propenso a enquadrá-los na Lei de Segurança Nacional - sem dar espaço para qualquer interlocução, o coronel se dirigiu ao tenente - Conduza estes subversivos ao cassino dos praças. Depois de um café com pão, entregue eles à Companhia de Comando e Serviço com a ordem de botá-los na limpeza do quartel. Vamos ver se eles servem para alguma coisa. É o tempo que preciso para decidir o quê fazer com eles.
A manhã ensolarada passou vagarosamente, queimando faces e botando calos nas mãos delicadas dos intervencionistas, que, contrafeitos, junto com soldados rasos sob o comando de um cabo, [os intervencionistas] varreram e capinaram praças e alamedas do aquartelamento, culminando a pintura do letreiro 'Braço forte, mão amiga' aberto em alto relevo nas imediações do estande de tiro. Esfolados, sedentos, enjoados, tontos, calejados, exaustos, os intervencionistas nunca tinham se sentido tão mal e torceram para acordar daquele pesadelo.
Passava das onze quando, sem direito a qualquer reclamação, depois de livremente saciar a sede no bebedouro dos praças, mantendo a formação militar que lhes fora atribuída no início da manhã, sempre acompanhados por homens armados, os intervencionistas foram conduzidos ao portão das armas, onde, antes de serem dispersados com o 'fora de forma!' regulamentar, foram comunicados que, esperando nunca mais vê-los, o coronel mandara libertá-los.
- Acho bom vocês correrem antes que ele mude de ideia - o sargento-de-dia os alertou.
A louca disparada desembestou tão logo a cancela limítrofe do quartel foi ultrapassada. De fato, cumprida a pequena distância à rua com passos tímidos, cada um tratou de seguir a recomendação do sargento e correu o mais rápido que pode. Correram como nunca tinham corrido antes. Tinham razão, pois aquela não era hora para testar a pertinência do aconselhamento do sargento. Naquele momento, quanto mais distante do quartel, melhor. Meia hora mais tarde, ofegantes, imundos, cansados e famintos, mas alegres com a liberdade circundante no mundo civil, o grupo intervencionista se desfez.
- Tô fora, Antunes. Nunca mais me chame para qualquer coisa programada pelo seu pessoal.
- Eu, também. Quero distância daquele povo.
Um a um todos manifestaram o desejo de sair do grupo, deixando Antunes sozinho - que, sem ter a quem liderar, não teve alternativa senão também sair.
E, assim, depois de poucas horas na caserna, convencidos de que a democracia era a melhor forma de governo, todos renunciaram à causa intervencionista.
(*) Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores
Embora baseado em fatos reais, este texto, escrito em maio de 2018, se insere no vasto campo da ficção tão bem retratado por José Américo de Almeida