O ESTRANHO NO ESPELHO

Nasceu na cidade grande. Teve boa educação, possível por fazer parte de uma família que valorizava o bem comum de seus membros. A família era formada por cristãos não praticantes do credo, como assim rotulam as denominações religiosas, se referindo a quem não faz parte de seu rebanho.

Seu pai era atencioso e dedicado à família, com boa vida não devido ser um bajulador de grupos ou pessoas envolvidas com a estrutura de poder, mas por ter durante toda sua vida, dedicado-se a prosperidade pessoal e dos seus. Era um trabalhador dedicado.

Diógenes, levando em consideração a família que tinha, não era sortudo, mas colhia sim os frutos provenientes da dedicação de uma família que existia para o bem comum de seus membros.

Tinha três outros irmãos, João o mais velho, Antônio o do meio e Manuela a caçulinha. Ele era dois anos mais velho do que a irmã. Sua mãe era uma dedicada senhora chamada Francisca. Uma mulher firme, com personalidade forte que dedicava-se com paixão a sua família, e isso não a tornava mais frágil e sim mais forte.

Com uma formação baseada no compromisso com seus objetivos de vida: estudos, formação profissional, família, fé, moral e decência, cumpria seu papel de ser humano normal em sua visão e de sua família.

Estudou desde a infância, sem ter atrasos em suas etapas de formação. Gradua-se em direito com a ideia de fazer-se um porto seguro da moral e decência em sua atuação como agente facilitador do livre trânsito da justiça. Ali unia-se sonho e realização no exato momento em que passa no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Era sem dúvidas mais um grande orgulho para a família, assim como seus irmãos.

- Agora a justiça será justa, dizia seu pai com orgulho.

Logo foi contratado por um escritório de advocacia médio, por indicação de um de seus professores da faculdade de direito. A indicação carregava os seguintes adjetivos: “estudioso, comprometido, inteligente e dedicado”.

- Sua função no escritório será analisar processos em andamento, e elaboração de peças iniciais. Terá o primeiro contato com o cliente, apontou um dos advogados sócios do escritório.

Começou a trabalhar com entusiasmo. Atendia com atenção os clientes do escritório e era um excelente ouvinte. Elaborava peças bem fundamentadas, nunca revisadas por outro advogado do escritório. Ganhava elogios quanto a objetividade das iniciais e sensatez dos argumentos. Era sem sombra de dúvidas um excelente advogado. Com essa dedicação e foco, foi designado a atender os casos criminais do escritório.

Achou que poderia ser conciliado a aplicação da verdadeira justiça, aquela que está acima de ideologias e características particulares da sociedade em que se fundamenta. A justiça que preserva o equilíbrio, independente dos interesses do Estado. A justiça que faz o injusto sentir o peso de sua mão, e não apenas saber que é só mais um conceito que sobrevoa o sistema legal de um país. A justiça independente de ponderações que a afastasse do que era certo e honrado.

Com o tempo vai se distanciando do que acreditava inicialmente, daquilo que foi ensinado quando estava no seio de sua família. Quando o sucesso pessoal não havia se sobreposto aos princípios morais que carregava de berço. Não era mais aquele menino que sonhava com a justa aplicação da justiça.

- São coisas da profissão, todos devem ter direito a justiça, dizia.

Confundia no entanto, o acesso a “justiça” (o conceito sublime), com a “justiça” (sistema e estrutura legal de um país). Um, era a essência da ética e decência no atuar para fazê-la ser efetivada, a outra, era só uma forma sutil de trilhar pelos caminhos do direito formal e material, convencionado para ser o que era: um conjunto de convenções que atendia os desejos de séculos de lapidação para atender aos interesses do Estado.

A justiça não institucionalizada, não pode ser adequada a interesses ou épocas, ela está acima de convenções ou momentos históricos. Para a sociedade espartana do período clássico era justo sacrificar todos os recém nascidos com alguma deformidade. Em essência dentro da concepção grandiosa da justiça, isso jamais foi justo, não era naquela época e não é atualmente. Para o complexo sistema que resulta na existência do Estado, a justiça é o que foi lapidado, o que convencionou-se que era.

A justiça não está totalmente atrelada aos princípios do direito, pois os mesmos são elaboração humana que seguem os anseios de uma época, de um regime, de um grupo, de um sistema legal. A justiça não pode ser submissa a isso. Ela está além das ideologias, das épocas, dos regimes e sistemas de governo, ou dos grupos sociais que influenciam o pensamento. A justiça é o silenciador dos interesses individuais e de grupo, que prejudicam o bem viver.

Diógenes se especializou no direito criminal, e agora não tinha mais aversão aos atos criminosos de seus clientes. Teve tanto sucesso que abriu seu próprio escritório de advocacia com atuação unicamente na área criminal. Como dizia:

- O Brasil é um prato cheio para se ganhar dinheiro, fazendo a justiça trilhar o curso do grande rio das interpretações do direito.

Defendia estupradores e assassinos confessos. Não tinha limites em usar as vítimas, aprofundando sua dor, para ter sucesso na defesa do transgressor. Desdenhava e mexia com o emocional tanto de vítimas (quando não assassinadas), quanto de seus parentes para obter sucesso em suas teses de defesa.

Quando atuava no tribunal do júri nos crimes contra a vida, era sempre o melhor ator. A acusação ficava acuada, pois suas teses na defesa, exploravam principalmente erros nos inquéritos, falhas investigativas, fundamentações mal feitas pela acusação, como ineficiência de provas e até mesmo criava erros na conduta das vítimas que influenciava o júri, embora sob contestação da acusação.

O sucesso profissional e financeiro triplicava a cada ano. Tinha bastante sucesso no que fazia. Menos para seus pais.

Teve problemas com o pai quando esse começou a cobrar uma postura mais honesta em sua profissão. Para justificar sua postura diante dos casos que atendia, dizia que toda alma para alcançar o paraíso haveria de passar por um julgamento, onde Cristo assumiria o papel de advogado de defesa, o Demônio representaria o papel de promotor e Deus seria o juiz. Dessa forma, na pior das hipóteses ele estava desempenhando o papel de Cristo em um julgamento. Esquecia ele que julgar, significa aproximar ao máximo os envolvidos da justiça, o sublime conceito, e não se utilizar de artimanhas para livrar da penalidade o transgressor dos limites impostos pela justiça.

Tornou-se uma decepção para seu pai por não considerar limites para alcançar cada vez mais sucesso e dinheiro.

Casou com uma advogada que comungava dos mesmos princípios que ele. Angélica era uma bela e jovem advogada que tinha como grande objetivo chegar o mais longe possível atuando na área jurídica. Via nele essa possiblidade, e por isso alguns diziam que ela era tão ambiciosa quanto seu marido.

Mesmo planejando não terem filhos, pelo menos nos dez primeiros anos de casamento, ela engravida e tem uma linda menina, amada intensamente pelos dois. Maria Clara veio para clarear a vida dos dois.

Começa a pensar na possibilidade de ficar mais atento, quanto a segurança de sua filha, pois vive em um país violento. Tinha noção disso. Como ele mesmo afirmava, “era um paraíso para advogados criminalistas”. Tinha conhecimento de causa, pois ao longo dos anos havia defendido e livrado a cara ou ajudado na diminuição da pena de estupradores, homicidas, agressores, ladrões, traficantes e todo tipo de criminoso, que contribuíam e muito, com o aumento geométrico da violência.

Seguiram suas vidas sendo mais iluminadas com sua doce e meiga filha. Maria Clara era um grande presente e ele sabia e sentia isso.

Certo dia foi procurado pela mulher de um traficante de drogas e de mulheres, para defende-lo das acusações de tráfico de drogas e de moças para atuarem como prostitutas nos rincões da América Latina e mesmo serem exportadas como mercadoria para Europa e Ásia. Era um figurão daquele tipo de crime.

Naquele processo atuou de forma extraordinária em sua visão. Desqualificou vítimas, fuçou erros na investigação, percebeu a inconsistência das provas, se utilizou das brechas da lei para beneficiar seu cliente. Atuou com maestria e teve sucesso. Mesmo nas acusações de assassinato, fez com que as famílias das moças levadas pelo criminoso, sofressem ainda mais com afirmações que levavam a crer que as mesmas haviam desaparecido pela fragilidade dos laços familiares, pela vontade de serem prostitutas e pelo não reconhecimento de seu cliente como um bem feitor, que só queria ajudar as moças e assim fez, mas que as mesmas queriam liberdade. A defesa sempre tinha algo de desqualificação das vítimas e de suas famílias.

- O que meu cliente poderia fazer? Prender as moças e chamar suas famílias? Essas moças não aguentavam mais suas famílias e por isso foram embora. Meu cliente apenas ajudou em um momento a fuga dessas moças. Se desapareceram a culpa é de seus pais autoritários que ceifaram a liberdade das mesmas.

Conseguiu mais uma vez. Com maestria entendia as entrelinhas do sistema legal brasileiro.

- Apenas permiti que a justiça fosse feita, dizia.

Diógenes foi procurado pelo seu cliente traficante para defender um estuprador e homicida de uma menina de dez anos. O crime havia ocorrido na extrema concepção do dolo, pois o assassino era tendente a atos de psicopatia cometidos contra meninas de até doze anos. Sua psicopatia o conduzia a prática de pedofilia e quase sempre no assassinato das vítimas.

Havia conseguido se livrar todas as outras vezes, embora houvesse processos investigativos abertos em outras paróquias judiciárias. Tinha tido acesso a bons advogados e fracas teses acusatórias. Se beneficiado das brechas que o sistema legal sempre lhe proporcionou.

Pegou o caso, como sempre fazia, com entusiasmo e dedicação. Sabia trilhar no extenso conjunto normativo brasileiro para fundamentar sua defesa. Conversava com seu cliente buscando formas de reconstruir eventos e verdades.

O acusado havia levado a menina, torturado de forma intensa, submetido a mesma a um extremo terror. Violentado sexualmente a vítima, por horas, sempre voltando a torturá-la intensamente, até que a mesma desmaiava e assim ficava por um bom tempo. A violência era extrema e constante. A pobre criança suportou dez horas do inferno proporcionado por aquele ser cruel, que fazia por simples deleite e para satisfazer sua personalidade cruel. Tinha total noção da crueldade que cometia em desfavor daquela criança. Mas agora havia um bom advogado o defendendo, cavucando na seara do direito para fundamentar uma boa defesa. Não cogitava entender a condição de sofrimento da vítima, ou mesmo no sofrimento da família da mesma.

Tentou das mais diversas formas livrar o criminoso de uma penalidade justa. Não conseguiu. Pelos antecedentes, pela crueldade, pela tenra idade da vítima, pela tortura, pelo perigo que representava à sociedade, pela possibilidade de voltar a cometer crimes com a mesma intensidade e pela necessidade de punição dos atos monstruosos não aceitos em uma sociedade civilizada, foi condenado a 33 anos de prisão em regime fechado. Com o agravante de ainda ser condenado pelos crimes de mesma complexidade cometidos anteriormente.

Ficou decepcionado com o resultado do júri. Como podia? Agora o inquérito havia sido feito com esmero, o processo havia sido elaborado com dedicação e zelo por parte do Ministério Público. Não encontrou brecha para fazer a injustiça reinar mais uma vez.

O condenado foi levado ao presídio, bastante decepcionado com aquele advogado. Como poderia ter sido condenado a tantos anos de prisão se havia sido convencido de que as chances de liberdade eram grandes? O erro foi do advogado.

- Seria possível aquele advogado ter recebido uma boa quantia da família da menina para facilitar sua condenação? Indagava a si mesmo.

O certo é que a partir daquele momento começou a desenvolver um sentimento de vingança em relação ao advogado que não conseguiu fazer uma boa defesa. Era o que pensava.

Como no Brasil os presos tem acesso a diversas coisas proibidas dentro dos presídios, assim como em muitos outros lugares, com sistemas penais frágeis, tinha acesso a celular, drogas, cigarros, entre outras “regalias”, acessíveis por presos com raízes em organizações criminosas diversas.

Aquele estuprador e assassino de meninas, planejava vigar-se daquele advogado. Organizou com seus parceiros de delitos, uma forma de fugir da prisão. Todas as tentativas foram frustradas, pois estava em um presídio que não seria fácil fugir. Então pede para seus comparsas de crime, não presos, sequestrarem a filha do advogado. Maria Clara tinha apenas dez anos, tantos quantos a ultima vítima daquele cruel bandido.

Ocorre o sequestro.

Para o arquiteto do sequestro, estuprador e homicida de crianças, não importava aumentar sua pena, queria olhar na cara daquele que supunha ser o motivo de estar ali, por pouco empenho em sua defesa. Em sua cabeça estava encravada a ideia de que deveria estar solto. Tinha direito de estar solto. O mundo era dos predadores. As presas eram apenas isso. Era a ordem natural da sociedade, presas sendo predadas por predadores. Em sua lógica doentia, ele tinha o direito de continuar sua vida como bem entendesse, não sendo justa sua prisão.

Diógenes, advogado brilhante, seguro de si, desmoronou. Sua filha era seu maior tesouro. Aquele bom filho, bom marido, “bom” advogado e bom pai, mergulha em profunda tristeza. Já havia mobilizado a polícia na busca de sua filha, amigos investigadores, todo aparato possível para encontrar sua filha. Então recebe uma ligação.

O criminoso preso, liga de dentro do presídio para aquele pai desesperado. Pede que vá até o presídio conversar com ele.

- Fui eu que mandei pegarem tua filha. Ela está com uns amigos meus, tão violentos quanto eu. Talvez até mais do que eu. Vem aqui no presídio conversar comigo.

- O que você quer. Defendi você. Não tenho culpa em sua condenação. Solta minha filha e farei o possível para que seu julgamento seja anulado.

- Isso não me interessa mais. Quero conversar com você aqui. Outra coisa, diga a polícia que fui eu. Estou preso e isso não importa mais.

Diógenes vai ao presídio e com a ciência dada a polícia, o criminoso agora queria plateia. Ele não queria sair da cadeia, queria mostrar que tinha domínio sobre suas vítimas não importando onde ou em quais condições se encontrava. Era um apreciador do domínio sobre o outro. Sabia fragilizar suas vítimas.

Os dois se encontram com a supervisão da polícia, e o criminoso pergunta:

- Como é sentir medo e saber que não pode fazer nada?

- Como? O que você quer que eu faça? Eu o defendi com empenho. A acusação tinha provas consistentes e por isso você foi condenado. Não tive culpa, entenda isso.

- Como é sentir medo e saber que não pode fazer nada?

- Como assim? Sentir medo? O que isso tem que ver com o sequestro de minha filha? Por que você a sequestrou?

- Como é sentir medo e saber que não pode fazer nada?

- É muito ruim, principalmente por ter envolvida uma pessoa inocente, uma criança. Minha filha não tem culpa de absolutamente nada. Se você quer punir alguém, só poderá punir a mim.

- Todas eram inocentes em certa medida. Nasceram mulheres e despertaram meu interesse. O que fiz com elas, fiz por vontade, para satisfazer meus desejos. E não pense outra coisa, já estou punindo você.

- Por quê?

- Por eu ser assim. Não irei mudar por que você quer. Por cumprir um tempo na prisão? Por ser certo ou errado? Faço por que posso e por ter prazer em fazer. Inicialmente era por ter raiva de você, mas agora me dar prazer olhar sua cara de desespero e angustia. Sua filha está no mesmo local em que encontraram a última menina que cruzou meu caminho. Pode ir, vá encontrar sua filha.

Aquele angustiado homem saiu feito louco dali, acompanhado por alguns policiais. Chegando ao local indicado, encontrou sua filha morta, embora sem sinais de violência sexual, estava nua e com evidentes sinais de estrangulamento. Ele desmoronou, mergulhado em profunda tristeza e lágrimas, lamenta por não ter podido fazer mais esforço para salvar a vida da filha amada.

Tantas vezes atuando na defesa de criminosos, sem se comover com a dor das vítimas ou dos familiares das mesmas, agora estava sentido uma dor que sempre se distanciou. Não era uma opção, ela veio de forma intensa e profunda. Não brotou em seu peito, mas arrancou seu espírito de seu corpo, devastando seu autocontrole. Estava arrasado.

Inicialmente pensou em matar os assassinos de sua filha. Sentimento que aos poucos foi sendo trocado pelo desejo de que fossem pegos e presos. Pagassem por seus crimes, mas vivos. Queria saber quem foi os autores, já que sabia quem havia mandado ser executada a ação criminosa.

Interrogado, o mandante não disse nada, demonstrava apenas satisfação no resultado. Para ele o melhor desfecho, era não o assassinato da criança, mas a destruição emocional do pai da vítima.

O advogado agora não encontrava força emocional para ir ao trabalho. Estava a cada dia mais arrasado. Não se cuidava como antes. Andava tristonho e arrependido. Certo dia ao passar diante do grande espelho que havia na entrada de seu closet, não se reconheceu. Parado, olhando para si mesmo com profundidade, não reconhecia aquela imagem refletida no espelho. Aquele era um estranho em seu espelho. Não se reconhecia, não pelo descuido que havia sido evidente em relação a si mesmo, nos últimos dias, mas pelos arrependimentos em sua vida profissional, refletida em seu semblante triste. Sabia agora que os conselhos do pai e da mãe, em relação à sua postura como advogado criminal, atuando na defesa do agressor e não do agredido, não era correta. E não era correta, principalmente, pelo fato de nunca ter levado em consideração a dor das vítimas e de seus familiares. Nunca havia ligado. Agora sentia a dor que sempre se recusou a ver nos outros.

Foi se afastando aos poucos da esposa. Fissurado agora por não se reconhecer no espelho. A cada dia em que se olhava no espelho, via um indivíduo ainda mais estranho e misterioso. Cheio de dúvidas, sobre si mesmo, mergulhou em profunda depressão.

Sua esposa e os familiares do mesmo não desistiram dele. Com o afeto, dedicação e insistência para que o mesmo procurasse ajuda profissional para vencer sua angustia depressiva, foi aos poucos superando sua dor. Não que ela desapareceu de seu peito, mas na medida em que aprendeu a conviver com a mesma.

Superou. Conseguiu novamente se olhar no espelho, só que agora na tentativa de se reconhecer como entendedor de si mesmo e do mundo a sua volta. Ainda via um estranho no espelho, mas que ficava mais íntimo seu a cada dia. Pensava em atuar como advogado novamente, mas com outra visão da justiça e do que era justo. Via agora, que o direito era uma possibilidade de se fazer o que era justo e injusto na mesma medida.