brasileirinhos ou a arte do esquecimento

“Brasil

Mostra tua cara

Quero ver quem paga

Pra gente ficar assim ”.

Cazuza

Nas vinte e quatro horas seguintes, após as eleições municipais, três homens esperavam sentados que a noite fosse melhor que o dia. Olhavam uns para os outros e encaravam um apresentador na televisão da parede afirmando que não choveria na manhã seguinte. Subitamente ouviram a voz de trovão e deboche:

-Se dinheiro fosse bosta eu tava todo cagado!

Pedrão disse empurrando a porta dos fundos do “Bar do Cróvis”. Garrincha, Tatu e Anselmo viram quando ele jogou as três cédulas sobre o balcão. As oncinhas caíram de boca pra cima prenunciando problemas. Clóvis, o proprietário, estava na cozinha fritando a linguiça.

-Ôh fedô de merda, tá contenti, éé?

Garrincha virou o copo, fez uma cara de múmia, depois que falou. Piscou para Anselmo. Este girou no tamborete e ficou de lado para o contente. Pedrão fez cara de foda-se e gritou lá para dentro:

-Cróvis, cerveja pra todos! Até pro Celmo, aqui...

Tatu repuxou as orelhas, justificando o apelido, os olhinhos sorriram diminutos e risc riscou o fósforo acendendo o cigarro. A labareda amarela deu-lhe um rosto de sátiro. E satiricamente ele disse:

-Hoji nóis toma nu cópu. Amanhã toma nu cu!

Braft fez o som da mãozona de Pedrão batendo no tampo da mesa de plástico. As pernas dela quase se abriram. Clóvis veio correndo da cozinha com uma bandeja vazia na mão e a boca cheia de linguiça.

-Senhores, grosh, grugh,humf, confusão no meu bar, não!

Os homens se entreolharam. Pedrão pegou as notas no balcão. Garrincha levantou os ombros e repuxou os beiços. Tatu sorriu para dentro. Clóvis largou a bandeja suavemente em cima da geladeira. Apenas Anselmo se levantou logo depois de Garrincha falar:

-Calma aí pessoal, ninguém quer confusão aqui não.

Pedrão se desculpou com as mãos abertas. Tatu fez uma cara de compadre, gesticulou as patinhas no ar e convocou todos à paz. Clóvis, como bom comerciante que vê o dinheiro ganhar asas, tratou de acalmar os ânimos. Sacou um abridor como quem saca uma navalha e abriu um sorriso, dizendo:

-Vamos tomá no copo a primeira rodada! E por minha conta.

Com uma mão para frente segurando a clientela e a outra na porta da geladeira foi retirando as cervejas pelo pescoço. Três bem geladas. Retorceu o bigode, chupou os dentes e correu para a cozinha onde a fumaça de linguiça queimada dançava no ar. Tatu se adiantou com o copo em riste.

-Cerveja e sogra só sérvi gelada em cima da mesa.

Ninguém riu. Estavam decididos. Apenas Anselmo estava indeciso entre a vontade de beber e a vontade de ir embora. Os outros olhavam fascinados para a espuma branca subindo pelo copo. Havia um mistério naquilo. Diante da cena apenas levantavam os copos em direção à boca. Era como se aquilo os tornassem mais fortes e maiores. A água do corpo deles solicitava mais água. Até que alguém cheio de água, ou mágoa, resolveu parar.

-Pra mim, chega!

Anselmo falou e foi se esquivando para a porta. Pedrão fez que tentou bloquear a passagem, mas Tatu e Garrincha o impediram sacudindo as cabeças e colando os dedos compridos e magros nos ombros dele. Clóvis chegou depositando a bandeja ao alcance do nariz de todos. Anselmo ainda olhou de soslaio para Pedrão que o mirava descaradamente. Clóvis ergueu mais uma cerveja entre os dois e Anselmo saiu devagar.

-Tá assim só porque o candidato dele perdeu.

Pedrão mastigou sorrindo essa conclusão. Até o Tatu concordou. Entre goles e mastigos foram vencendo os minutos e estreitando a amizade. Clóvis sorria. Já estavam na quinta rodada quando alguém se lembrou do que tinha esquecido:

-Porra! Mi’a mulhé tá mi isperando.

Todos se levantaram solidários. Afinal, haviam bebido todo o dinheiro do amigo. O mínimo que podiam fazer era se levantar e verem-no cambalear, segurando nas paredes, e sair pela porta estreita rua afora. Tatu filosofava:

-O mundo tá girando e nóis também...

Clóvis limpou as mãos no guardanapo e pensou que se o planeta fosse uma bola, ele e seus amigos naquele momento, estavam bem no centro do mundo. Ficou torcendo o pano enquanto Garrincha foi ao banheiro e Tatu acendia um cigarro. Assim que voltou, Garrincha pegou o cigarro do amigo e deu uma tragada. O botequeiro recolheu as garrafas no momento em que Tatu saiu para a rua vendo o mundo girar.

-Hoji já é amanhã, né não?

Garrincha disse olhando para trás. Tatu concordou macaqueando o sorriso. Seguiram caminhos diversos, trocando as pernas, enquanto Clóvis fechava com um baque a velha porta de madeira. Os dois andavam devagar como se segurassem um corrimão imaginário. Ninguém os esperava em casa, dali a algumas quadras, ao contrário do Pedrão que caminhava apressado na rua de cima. De repente, num pensamento veloz, o clarão da certeza chegou nele:

-Caraio!! Eu sabia que tinha esquecido alguma coisa!

Enfiou a mão em um dos bolsos e encontrou a fatura da energia vencida há tempos. Olhou para as varandas das casas vizinhas, cada qual com suas luzes acesas, e sentiu as pernas tremerem. Apenas a sua casa e varanda estavam completamente às escuras. Tristemente desejou, mais que tudo, que sua mulher estivesse dormindo.

make
Enviado por make em 10/05/2020
Código do texto: T6943396
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