O avô e o neto: viagem ao centro do afeto

Encontraram uma Santiago toda pichada, vestígios de grandes mobilizações populares recentes.

Agora, a cidade parece ter voltado ao normal, mas seus muros e fachadas são como um vibrante manifesto escrito a mil mãos anônimas.

Um grande texto a céu aberto que permanece como registro daquele momento.

O avô achou a cidade mudada desde sua última visita há dez anos. O impressionante Sky Costanera, que ele não conhecia, refulge nos seus 66 andares:

- O edifício mais alto da América Latina-, a motorista do táxi diz orgulhosa.

Com seus arranha-céus envidraçados, Santiago agora é uma capital moderna.

A cidade mudou e ele também.

No táxi, avô e neto vão curiosos para conhecer o hotel onde passarão a primeira noite, rumo ao deserto de Atacama.

É a primeira viagem dos dois sozinhos e já pressentem mútuas descobertas.

Sabem que vão fazer uma viagem ao centro do afeto.

O avô começou a viagem com quase uma ponta de pânico, uma desconfiança com seu próprio corpo. Envelhecido, antecipava preocupações e inseguranças com qualquer viagem.

Há tempos não viajava, e nada lhe dava mais segurança do que ficar no seu território caseiro: tinha seus médicos por perto, podia ir a pé aos laboratórios que usava cada vez mais. E a analista que o atendia a qualquer momento que precisasse.

Ele era um velho que ainda arrastava as angústias da juventude.

A viagem para Atacama, lhe disseram, tinha as durezas de um deserto, com seus desconfortos, com a secura do ar, com o desconhecido de sua geografia e suas longas caminhadas. E ameaçadoras altitudes de mais de mil metros acima do planalto paulista onde ele habitava o seu bunker. Sua caverna. Seu esconderijo.

Antecipava sentimentos terríveis: a tartaruga extraída do casco protetor, a larva da borboleta extirpada do casulo, o peixinho dourado arrancado por mão cruel do aquário.

Presságios que sentia na pele, nas vísceras, na alma.

Era assim que se sentia: um bicho frágil que ia ser lançado no deserto mais seco do mundo: Atacama no norte do Chile.

Tinha notícias de belezas naturais incríveis, mas sabia das suas altitudes que afetam mesmo os mais jovens: vertigens, dificuldade para respirar, desconfortos físicos.

Viveu dias de angústia antes da viagem, mas sabia que precisava viajar. Quebrar o círculo vicioso de sua rotina diária: dieta controlada, medicamentos, exercícios.

Um corpo exigindo cada vez mais cuidados.

Como seria passar uns dias sem todas essas coisas que consumia cada vez mais?

E se adoecesse e lá no deserto não tivesse médicos?

- Meu Deus, como tinha chegado a ficar tão prisioneiro disso tudo? - se angustiava ao pensar.

Na mochila, o neto não leva nenhum remédio.

O avô se lembra da liberdade, quando jovem, de viajar de carona pelo mundo: sua alma bem mais leve, como sua bagagem de então.

uma alma tão leve que, para levá-la, bastava uma bagagem de mão

Levava um segredo na viagem: o diagnóstico recente de uma doença incurável que apenas os filhos sabiam.

Antes de partir, perguntou direto para o filho:

- Ele sabe?

-Não, pai, ainda sabe. Mas pode contar que vai ser tudo tranquilo.

Ele ia contar, só não sabia ainda quando e como fazer.

Pois é, de moço audacioso e viajador que foi um dia, era agora um senhor com medo de cair no mundo.

Era duro aceitar isso.

Mas ele sabia que precisava viajar, respirar outros ares, tentar, quem sabe, reencontrar em si, o rapaz que, sem grana, mas com saúde e coragem, já tinha viajado muito.

Talvez a juventude do neto pudesse ajudá-lo.

Precisava saber como era viver fora da bolha que o protegia e o aprisionava.

No deserto, o primeiro passeio foi no Vale da Lua com sua paisagem lunar, sua brancura salgada e longas caminhadas por terreno íngreme, ora pura areia, ora muita pedra, a desafiar o equilíbrio de um quase setentão que, mesmo quando jovem, nunca foi bom de equilíbrio.

O coração palpitando entre a beleza do que ia aparecendo enquanto caminhavam, e o receio de se acidentar.

As subidas e descidas se sucediam.

Tentava respirar fundo e compassado pois não tinha ideia de quanto esforço o passeio ia exigir.

E seguia pela trilha estreita à beira de despenhadeiros que lhe davam vertigens.

O neto, que não desgrudou dele um minuto, sempre tinha uma mão estendida para apoiar quando via que ele tinha alguma dificuldade.

O avô brincou:

- Nunca me senti tão velho como hoje. Nunca dependi tanto de alguém para caminhar.

O neto, vigilante, logo atrás o tempo todo.

Dentro dele, sentimentos em confronto: recusar a mão firme de homem feito do neto - como se a recusa fosse fundamental para manter sua dignidade de alguém ainda forte e independente-, ou relaxar e aceitar ser o senhor envelhecido que se tornou.

O tempo tinha lhe trazido fragilidades.

O rapaz que um dia ele foi reivindicava presença.

Suas paisagens internas disputavam atenção com a deslumbrante paisagem externa.

O moço que havia nele se recusava a ceder lugar para o velho.

Em certo momento, o guia percebendo sua dificuldade de se equilibrar sobre as pedras, aproximou-se solícito e ofereceu o apoio do braço.

Entre envergonhado e grato, disse:

- Tenho problemas de labirinto, por isso preciso de apoio-, sussurrou constrangido com sua dependência.

A solicitude do guia provocou-lhe uma perturbação quase insuportável.

Sentimentos contraditórios digladiavam em sua alma.

Estava vivendo uma situação nunca vivida antes. Não tinha parâmetro para se posicionar nela. Estava completamente confuso e dividido entre o moço que ainda sentia que era, e o velho que se apresentava.

Ele não conseguia saber o que ele era.

Ele se estranhava.

Ele era um novato no papel de velho e se via tomado por uma angústia que não podia ser revelada nem para o neto, pois ele nem sabia dizer exatamente qual era.

Os quase vinte quilômetros de caminhada do passeio o deixaram esgotado, e, no trecho final a pé para o hotel, sentia que a vontade de chegar já não conseguia arrastar o corpo que ia ficando cada vez mais para trás.

Alquebrado, desabou na cama mal abriu a porta do quarto.

No segundo dia no deserto, fez a revelação da doença para o neto. Falou de repente, numa brecha da conversa que estavam tendo.

Um pequeno poema lhe ocorreu enquanto revelava seu diagnóstico.

- As famílias têm segredos que só as famílias conhecem, velam por labirintos de noites que nunca amanhecem.

Tinha ganhado um concurso de poesia da escola dos filhos adolescentes há muitos anos com esse quase haikai.

Certas doenças produzem bloqueios familiares, e sua revelação vai sendo feita à revelia do doente, por conversas, indiscrições e alianças que correm nos bastidores da família.

Notou apenas um pequeno movimento de corpo no neto diante de sua revelação. Ele perguntou pouca coisa: quando tinha sido o diagnóstico, se ele estava fazendo o tratamento direito e como se sentia.

Selaram uma cumplicidade que ia se aprofundar no correr da viagem.

O neto comentou que o estava achando forte, e impressionado com sua resistência para os passeios.

Não perguntou nada sobre perspectiva de tempo de vida.

A vida que lhe interessava estava acontecendo agora.

- Quando eu tiver sua idade vô, você não estará mais vivo. Vou sentir muito sua falta-, já havia dito antes da revelação.

O avô ficou sem palavras para comentar o que o neto lhe disse.

E não se falou mais sobre a doença até o final da viagem.

Ele, pura vitalidade nos seus vinte e um anos.

Atrai as moças das excursões como as moscas que se lançam suicidas naquelas armadilhas lambuzadas de açúcar e veneno.

Disposto e feliz o tempo todo, só ficou triste quando o avô percebeu uma rachadura na flauta de bambu que tinha comprado na rua, e que ele ainda não havia notado.

Sentir-se ludibriado pelo vendedor que lhe vendera a flauta defeituosa trincava sua fé de jovem nos homens.

Confessou-se triste, e o avô, mesmo cansado, o acompanhou nas várias voltas que deram no pueblo para tentar localizar o vendedor da flauta.

Ficaram horas caçando os sons do flautista.

O avô ficou triste junto com ele.

O neto, atendendo recomendação da sua analista, todas as manhãs anota seus sonhos com sua escrita limpa e caprichada.

O avô escreve no computador ao seu lado na mesa que fica numa varanda que se abre para o jardim cheio de pedras e cactos.

A paisagem, por todo lado, é de deserto.

O deserto parece invadir o jardim.

O neto tem sempre fome e sempre está em movimento.

Os dois se alongam juntos logo cedinho no jardim do hotel.

O exercício lado a lado os deixa mais unidos.

Raros são os silêncios entre eles.

Em cinco dias, o neto já se comunica bem espanhol apesar de jurar que não sabia uma palavra da língua quando chegaram.

Conversa com todo o mundo, e o avô perto dele fica sempre calado.

Ele hipnotiza as pessoas que mal olham para o avô.

O neto tem uma vontade de aprender que o transborda, e está sempre atento a tudo.

O avô é o expectador encantado da esperteza do neto.

Ele dá abraços de surpresa no avô, cola seu corpo no dele, dá um beijo e agradece, com olhos úmidos, a viagem.

O avô fica enternecido com esses brilhos nos olhos do neto.

Sutilmente, o neto sabe dosar o ritmo das caminhadas para o avô se sentir confortável.

O avô percebe perfeitamente seus ajustes de passo, se sente agradecido, mas não chega a dizer “obrigado”.

A ajuda do rapaz é tão sutil que ficaria estranho qualquer agradecimento.

Eles produzem consensos amorosos o tempo todo.

No começo da viagem, tinham pudores de se mostrarem nus um para o outro.

O neto quebrou o gelo abrindo a porta do banheiro depois do banho, deixando o avô contemplar a força de sua nudez de atleta nas brumas do vapor.

O avô deixou-se ver nu sentado na cama separando a roupa que ia vestir.

Ele sentiu-se um velho sob o olhar distraído do neto.

Eles estavam estreando intimidades de avô e neto.

Nesse mesmo dia, o avô viu-se sem sua carteira com todos os documentos. Ele jura que foi roubado, mas o neto acha que ele esqueceu no guichê da estação de metrô.

Ele já percebeu como o avô é distraído.

Dessa vez não chegaram a um consenso: roubo ou distração do vô? A batalha para remediar a situação durou um dia todo, e, quando as coisas ficaram mais ou menos resolvidas, o neto já havia “interditado” o avô e passado a controlar tudo: o dinheiro ficaria com ele, o passaporte também.

O avô aceitou isso como um ato de amor e cuidado, mas não sem protestar.

Andava preocupado com suas perdas e distrações cada vez mais frequentes.

- Vô, você repete a mesma coisa umas cinco ou seis vezes.

O avô apenas riu.

Sentiu que seria bobagem comentar que aquela observação carinhosa só reforçava suas preocupações.

Ele sabia que o neto não quis ofendê-lo.

O duro é que ele tinha razão.

Depois de um dia de tantas caminhadas pelas rudezas do deserto, seus corpos pedem descanso.

O velho e o moço estão cansados.

Como último ato do dia, o avô, já debaixo das cobertas, pergunta:

- E que passeio vamos fazer amanhã?

Nessa noite, dormiu como um menino.

Luiz Cecilio
Enviado por Luiz Cecilio em 08/05/2020
Reeditado em 09/05/2020
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