Mulher de Valor
- Shirli, vamos ter algumas mudanças importantes aqui em casa este fim de semana - anunciou cerimoniosamente a mãe, Irina Wandsworth. - Seus avós estão vindo nos visitar.
Os pais de Irina residiam longe, em outro estado, e geralmente os Wandsworth é que iam visitá-los. E, até onde Shirli se lembrava, nunca haviam vindo num fim de semana; isto porque, eram judeus muito devotos e preferiam ir à sinagoga no shabat. Já os Wandsworth, apesar de religiosos, não seguiam as regras de modo muito estrito.
- Mudanças... tipo o quê? - Indagou a adolescente, preocupada.
- Respeitar os 39 trabalhos proibidos; ligar ou desligar qualquer aparelho elétrico, escrever, cozinhar, lavar roupa e falar ao celular, basicamente - discorreu a mãe.
- Nenhum tipo de aparelho elétrico? Nem as luzes?
- Nem as luzes. Seu pai vai trazer timers para ligar e desligar as lâmpadas automaticamente durante o shabat.
- Mas mãe... meu celular, meu laptop... como vou falar com minhas amigas? - Desesperou-se Shirli. - Será que posso deixá-los no meu quarto e usar escondido, sem ninguém ficar sabendo?
Irina pôs as mãos nas cadeiras.
- D-us vai saber, Shirli Wandsworth. Portanto, na sexta-feira à tarde você irá me entregar o celular e o laptop, que ficarão trancados até sábado à noite.
Shirli sabia que não poderia se contrapor à mãe. Não com os avós em casa, pelo menos.
Conformou-se ao lembrar que eles ficariam apenas pelo fim de semana.
* * *
- Sabemos que estamos tirando vocês das suas distrações habituais - declarou a avó de Shirli, Zohara, para a família reunida na sala de estar dos Wandsworth, na noite de sexta-feira. - Mas o avô terá que fazer alguns exames médicos na segunda de manhã, e essa é uma oportunidade rara para nos reunirmos no shabat.
"Então, era essa a razão da visita inesperada", pensou Shirli. O avô, Yehoash, apenas ouvia, calado.
- Vocês sempre são bem-vindos - declarou polidamente o pai de Shirli, Efron. Os dois homens usavam quipás sobre as cabeças.
- Imagino que Shirli deve estar sentindo falta da TV - disse então a matriarca, virando-se para a neta com um brilho divertido no olhar.
- De forma alguma, avó - assegurou Shirli. E estava sendo sincera, já que TV era algo para o qual não dava a mínima importância.
- Eu sempre digo à Shirli, - atalhou Irina - que famílias conversam, principalmente à mesa de jantar. Sem distrações, como a senhora mesma diz, mamãe.
- Teremos que conversar apenas sobre a Torá? - Indagou cautelosamente Shirli.
- Não, de forma alguma criança - replicou o avô. - Você pode falar sobre qualquer coisa... e também sobre a Torá.
Shirli pensou que preferiria estar com seu celular em mãos, mas calou-se.
- Vamos para a sala de jantar? - Convidou então Irina, erguendo-se.
Todos acompanharam a anfitriã, e tomaram seus assentos à volta da mesa posta. Efron começou a cantar o Shalom Aleichem, seguido pelos demais, para dar início aos trabalhos do shabat. Quando passaram ao segundo hino, o Eishet Chayil, algo inesperado aconteceu: as luzes da casa apagaram-se. Continuaram assim mesmo, cantando no escuro, e como ao término a energia não havia retornado, Efron foi até a janela olhar para a rua lá fora, também às escuras.
- Parece que foi uma pane geral; só espero que não demore muito.
Sentada á mesa, Shirli teve a estranha sensação de que aquele apagão era um recado para ela e sua vontade de usar o celular, em vez de estar ali tendo que fazer sala para os avós. Mentalmente, pediu perdão a D-us.
E então, as luzes voltaram, como se ela houvesse sido perdoada.
- [07-05-2020]