Tutu de domingo

Ano de um mil, novecentos e oitenta. Para o Brasil, uma época muito difícil em termos econômicos. Uma grande recessão econômica aterrissou aqui. Muitas pessoas perdendo o emprego, várias greves, inflação lá em cima, planos econômicos não dando certo, enfim, uma luta econômica e política muito forte.

Dona Clara, uma senhora de pouco mais de sessenta anos de idade, viúva, mãe de dois filhos que moravam na cidade de São Paulo e lá foram ainda jovens, parecia contar os dias da semana. Trabalhou em casa de família como doméstica e lá permanecendo por vários anos até se aposentar. Fazia de tudo. Lavava, passava, cozinhava, fazia limpeza e ainda tinha ânimo para cantar no coral da igreja em todas as festividades. Morava em uma casa simples de poucos cômodos, sendo o proprietário um juiz aposentado muito rígido e gostava de seus negócios muito verdadeiros. Conversa pouco, lia muito e tinha uma enorme afetividade com Dona Clara, pois ela foi quem o pajeou quando criança. Ela era ainda nova, de mais ou menos dez anos, quando conseguiu o primeiro emprego na casa dos pais do juiz, de nome Faustino. O tempo passou e o juiz adquiriu vários imóveis na cidade e ofereceu a humilde casa para Dona Clara morar. A gratidão por ela era tão forte, que jamais recebeu um mês de aluguel.

Um sábado chuvoso. Dona Clara foi ao armazém do Sr. Manuel, um próspero comerciante da cidade. Era famoso por vender de tudo um pouco. Até remédio encontrava no armazém dele. Por ser sábado, as vendas de carnes eram imensas. Todos iam cedo para comprá-las. Formavam-se filas e ele, juntamente com dois ajudantes, que carinhosamente ele os chamava de caixeiros, atendiam a todos com um sorriso nos lábios e sempre cantando uma música portuguesa. Então, Dona Clara assim falou:

- Seu Portuga, me vê o de sempre. Ontem eu recebi a aposentadoria. Vou pagar a compra do mês passado e “vosmecê” anota a de hoje. Vou pedir para o caixeiro levar para mim, pois não aguento levar tudo. Está certo?

- Sim, Dona Clara. A senhora é muito honesta. Se todos os meus fregueses fossem assim, eu estaria mais feliz e poderia cantar mais música. O João levará as compras até a sua casa.

- Obrigado.

- Amanhã é domingo, o dia de eu fazer o tuto mineiro. A família do Dr. Faustino, a mulher dele e ele, vai almoçar lá em casa. Eu sou pobre e para alimentar gente rica, vou ter que fazer alguma coisa que eles gostam. Eles sempre gostaram do tutu. Então, aumenta a quantidade. O fubá precisa estar bem fino e de moinho de água. O focinho bem gordo, a costela picada bem pequena, pois as facas lá de casa não cortam muito bem. A linguiça mais curada, uns pedaços de carne sem osso, o toucinho deixa com a pele, pois vou cozinhar muito. Mais tudo o que eu preciso para o resto do mês.

O comerciante já conhecia muito bem Dona Clara. Ela era uma pessoa muito honesta. Sempre pagou as contas em dia e se ficasse devendo, não compraria. Passava falta, mas era muito rígida.

Feliz da vida, ela ia embora. Passava na farmácia e comprava alguns remédios de uso próprio. Pagava as contas e ia satisfeita para casa.

No domingo, ela levantava bem cedo. Acendia o fogo no fogão à lenha. Coava o café, fritava os deliciosos bolinhos de chuva. Após isto, ia para o quintal e arrumava as poucas galinhas que possuía. Colocava bastante milho, jogava algum verde, trocava a água, separava a galinha choca e olhava se os pintinhos haviam nascidos. Feito isto, arrumava parte da cozinha e dava o início ao almoço. Chovia forte na manhã, mas não impedia que ela iniciasse o longo e delicioso almoço dominical.

Com a lenha enxuta no rabo do fogão, assim chamado, Dona Clara aumentava mais o fogo. As panelas de ferro, bem limpas, mas na cor preta, eram postas uma a uma. Primeiro, era a vez do angu. Enchia-se uma panela maior, por ela nomeado caldeirão. A água fervia. Na panela um pouco maior, sentia-se o cheiro do toucinho sendo frito. Em outra, as carnes sendo cozidas. O cheiro do tempero era sentido à distância pelos vizinhos. Dava água na boca de quem ali passasse. A manhã ia passando. A chuva aumentava e diminuía, mas não tirava o ânimo dela. Sempre feliz, cantava uma canção, ora rezava alguma oração, mas sempre feliz. Para verificar se os temperos estavam bons, ela, de vez em quando, com a concha, pegava uma pequena amostra do caldo. Punha na palma da mão e levava à boca. Balançava a cabeça e caso não estivesse bem fazia gesto e fechava a cara. Era o momento de acrescentar mais tempero.

As horas iam vagarosamente passando. A missa das dez horas já havia acabado. Muitas pessoas passavam perto da casa dela e exclamavam que hoje era festa no lar de Dona Clara. Alguns faziam uma pequena parada ali, mas ela fingia não ver quem ali estivesse prestando atenção no almoço.

O silêncio era quebrado, quando um automóvel estacionava perto do portão da humilde casa. O juiz e a esposa estavam chegando. Andavam apressados, pois a chuva ainda era um pouco forte. Com o guarda-chuva em punho, os dois caminhavam para dentro da residência. Uma sacola era trazida junto deles. Seria um presente para Dona Clara. Deveria ser o aniversário dela, mas ela não comentou com ninguém, nem mesmo com o comerciante do mercado.

Aos poucos só escutavam as boas risadas de todos. Cantavam, rezavam em tom de uma paz eterna naquele humilde lar.

O almoço já estava quase pronto. A esposa de Faustino queria aprender o tempero do almoço, principalmente do tutu. Contudo, ela dizia ser segredo.

O arroz feito na panela de pedra estava soltinho. O tempero dele se exalava no ar. Faltava, ainda, o tutu, mas o cheiro da farinha de fubá bem torrada, o cheiro dos temperos e o feijão amassado com uma concha denominada estrela, iam entrando nas narinas deles. Faltava, também, a couve picada bem fina. Alguns minutos a mais, estava o almoço pronto. As panelas ficavam no fogão, pois a pequena mesa não cabia todos ali. Em um grande banco feito de madeira, eles se sentavam. Com o prato na mão, um a um ia servindo. Na mesa, Dona Clara comprou um litro do vinho seco por nome de Chapinha. Cada um bebia um copo e deliciavam o almoço.

Após o almoço, a sobremesa era um delicioso doce de leite bem molinho, acompanhado por queijo fresquinho. Conversavam muito e ficavam ali até o final da tarde. Quando o casal ia embora, Dona Clara se sentia feliz por ter feito aquele delicioso almoço simples, mas com amor de mãe e de pessoa sofrida.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 03/05/2020
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