Epopeia carioca
A vida sempre foi dura com Genilsinho. Nascido em família pobre, foi criado pela avó D. Tereza no morro da Mangueira.
“Não tem moleza aqui não pivete”, dizia sempre ela, zelosa.
A mãe Cristina, o deixou quando ainda tinha 5 anos para viver com seu novo amor que sentenciou: ou era ela sem a criança ou não haveria relacionamento. O pai, malandro conquistador, era daqueles que fazia filho e não criava. Estava sempre atrás do próximo rabo de saia para seduzir e se gabar para os amigos, “papai não deixa passar nenhuma!”, dizia orgulhoso.
Na escola o moleque nunca se deu bem com os livros, mas como era esforçado, recebia a atenção dos professores que sempre se solidarizavam com o aluno maltrapilho. Sua preferida era a de matemática, D. Matilde. “Esse garoto é batalhador”, sempre dizia a mestra.
Na hora do Recreio, o moleque penava para conseguir entrar na pelada. Frágil e com uma leve deficiência na perna, não conseguia correr muito e chutava mal. Mas como gostava muito da bola e estava sempre atento ao que acontecia no mundo do futebol, era o líder das resenhas que aconteciam após a prática do esporte bretão, sempre puxando a sardinha para o seu Fluminense. Isso somado a sua simpatia permanente, angariava bons amigos, o que lhe garantia vaga cativa no jogo, apesar das dificuldades.
“Vem ser feliz torcendo para o Mengão! Não entendo essa sua paixão pelo Pó de Arroz.”, dizia Magno, um dos seus melhores amigos.
Na favela, D. Teresa “marcava durinho” e não deixava o neto se aproximar da malandragem. Apesar do olho vivo da avó, o garoto era querido até mesmo pelo pessoal do movimento.
“Estuda parceiro, essa vida aqui não dá futuro pra ninguém.”, dizia Bimba, chefe do tráfico da localidade.
Seus “parça” no morro eram Dudu e Parafuso. Tinham a mesma idade e por isso gostavam das mesmas coisas. Depois de chegar em casa e fazer a lição da escola, Genilsinho, junto dos amigos, se entregava as pipas, outra de suas paixões. Era jeitoso e respeitado entre os pipeiros, pois apesar da pouca idade (a essa altura cerca de 11 anos) já vencia os confrontos pelos céus da região com os mais renomados adeptos da arte de empinar o papagaio de papel.
“Moleque abusado!”, dizia em tom de brincadeira Catulo, um dos veteranos no negócio
Com o passar dos anos, o garoto virou adolescente e diante das restrições financeiras típicas dos moradores das comunidades cariocas, se viu obrigado a começar a ganhar o seu dinheiro para ajudar nas despesas da casa. Apesar da sedução da grana fácil trazido pelo tráfico de drogas, a linha dura da Vó Tereza já tinha moldado o caráter de Genilsinho, e o garoto começou carregando material de construção favela acima. A encomenda chegava até certa altura da comunidade, de onde então o caminhão não conseguia avançar e dali em diante, era do jovem pardo o trabalho de carregá-lo até a casa do freguês.
Dado o movimentado mercado de construção, ampliação e reforma do morro da Mangueira, Genilsinho estava sempre com trabalho. Eram 50 pratas aqui, 20 ali e assim ele ia vivendo seus dias, ajudando a Vó Teresa e se mantendo. Sobrava pouco, mas ainda dava pra comer o joelho com refresco de maracujá na birosca do Tião e guardar um trocado para quem sabe um dia, comprar um novo celular, daqueles que aparecem na televisão.
A escola acabou ficando pra trás no final do ensino fundamental. A necessidade falou mais alto, e como era competente no que fazia, o garoto estava sempre trabalhando, característica que D. Tereza dizia ter herdado do avô, o falecido Sr. Gervásio. Essa dedicação ao trabalho já havia chamado a atenção de Souza, motorista do caminhão da Pedraria Jesus, a preferida dos moradores da localidade na hora de construir e reformar, a quem carinhosamente chamava de Barriga.
Souza sempre indicava os serviços do jovem parceiro para os novos moradores, após a realização de cada entrega.
“Fala com o Genilsinho da D. Tereza que ele sobe isso aí rapidinho.”, dizia ele.
Certo dia, precisando de alguém para a vaga de ajudante de caminhão, Barriga mais uma vez se lembrou do amigo e lhe indicou para vaga.
O fanático tricolor não acreditou quando o motorista avisou que estava lhe indicando para um emprego na Pedraria. “É de carteira assinada.”, afirmou ele.
O jovem aceitou prontamente a oferta. Há quem diga que só o havia visto mais feliz no dia em que o Fluminense foi campeão em 2010, após 26 nos sem levantar o caneco do Brasileirão.
“Começa na segunda.”, informou Sr. Pedrosa, responsável pelo RH da firma.
Genilsinho mal conseguiu dormir no fim de semana. No dia combinado acordou cedo e pontualmente às 7:00 já estava batendo seu ponto no emprego novo. O trabalho era pesado mas isso pra ele não era novidade.
“Isso é mole pra gente Barriga.”, dizia ele, tirando sarro do amigo.
O rapaz sempre chegava com antecedência, para dividir o café e o pão com manteiga com Souza e Mariano, o outro ajudante do caminhão. Só quase se atrasavam para começar o batente quando o Fluminense vencia aos domingos ou nas quartas-feiras. Era duro para os companheiros, no dia seguinte, aguentar o Genilsinho falando cada detalhe da partida!
“Pó de arroz, tu fala demais, vamos trabalhar!”, brincava Mariano.
Dia após dia o jovem dava duro na sua função. Não faltava nunca e era querido por todos os funcionários. Ninguém tinha o que reclamar dele, pelo contrário, todos eram só elogios.
“Garoto de ouro!”, sempre repetia D. Silvana da contabilidade.
Dois anos se passaram e Genilsinho, a essa altura com 18 anos, já sabia o nome de todos os produtos vendidos, e só de olhar conseguia dizer quantos metros cúbicos de areia ou quantas unidades de tijolos haviam no local. Esse talento chamou a atenção de Dr. Adilson, Engenheiro responsável pela Construtora Iluminar, uma das principais clientes da Pedraria Jesus. Ele era responsável pelas obras e por receber e conferir todo o material que era entregue quase que diariamente na empresa.
Com a demissão de Jonas, acusado de desviar material do almoxarifado, o engenheiro estava precisando de alguém para controlar o estoque de uma de suas reformas e via em Genilsinho alguém com grande potencial. No dia seguinte, após receber a encomenda do dia, Dr. Adilson chamou o jovem no canto. “Tricolor, quando terminar o seu expediente passa aqui na construtora que eu preciso falar com você em particular.”, disse ele.
Genilsinho passou o resto do dia pensando o que Dr. Adilson estava querendo. “Será que houve algum erro na entrega do material?” Pensava ele.
Conforme combinado, após a última entrega do dia, o jovem trabalhador se despediu de seus colegas e rumou para a construtora. “Tricolor, que bom te ver aqui!”, disse Dr. Adilson.
“É o seguinte, estou precisando de alguém pra controlar o material de uma das nossas obras, e acho que você é o cara certo pra essa função. A gente te paga 2 salários mínimos e mais o vale-transporte, você aceita?”, complementou ele.
Surpreso, Genilsinho não sabia o que fazer. Não sabia se gritava, se chorava, se abraçava o engenheiro. Segurando a emoção, respondeu: “Claro Doutor, poxa nem estou acreditando nisso.”
“Ótimo, então já passa aqui amanhã e traga os seus documentos. Não esquece do diploma do segundo grau.”, disse Dr. Adilson.
Por essa o jovem não esperava. Acabou largando os estudos quando terminou o ensino fundamental, e como sempre previa D. Tereza, agora a vida lhe cobrava o preço de sua desídia.
“Olha Dr. Adilson, eu não tenho o segundo grau. Mas obrigado pela lembrança...”, disse com uma indisfarçável tristeza.
O engenheiro, que também era de origem humilde e nunca esqueceu as ajudas que recebeu, arrematou: “que isso Genilsinho, a vaga é sua. E tem mais, pode se matricular de novo na escola que pobre só sobe na vida com estudo meu amigo. Eu sou exemplo vivo disso!”
“Fica tranquilo que vou te ajudar a pagar. Se aceita um conselho, faz um supletivo com técnico em edificações, já que você agora trabalha na área da construção.”, concluiu o solidário doutor.
Era o êxtase para Genilsinho! Além do emprego onde ganharia o dobro, também iria voltar aos estudos e ainda por cima fazendo curso técnico. Não via a hora de contar a novidade para D. Tereza.
Saiu correndo pra casa. Chegando na Mangueira, estranhou a quantidade de viaturas. O tráfico já fazia tempos que estava discreto, diziam as más línguas que o batalhão estava recebendo o “arrego” e por isso, as operações policiais haviam praticamente acabado.
Subiu pelo beco da escadaria e avistou seu barraco. Na porta, D. Tereza conversava com Isaura, outra antiga moradora da localidade. Foi ela que ajudou na criação do Genilsinho.
“Velha, o que está acontecendo na minha favela?”, brincou o jovem.
“Seu amigo Parafuso que agora deu pra roubar carros e esconder aqui no morro.”, respondeu a idosa.
Genilsinho já tinha ouvido rumores sobre as novas aventuras de Parafuso. Mas o trabalho tinha lhe afastado da convivência com os amigos de infância e mal encontrava os velhos camaradas.
“Que isso minha avó, o Parafuso não podia ter ido por esse caminho.”, disse ele.
“Mas trago boas novas: recebi uma oferta de emprego na construtora, cliente da Pedraria. O engenheiro me convidou pra trabalhar com ele. Disse que eu conheço bem os materiais, sou bom no controle das quantidades. O salário é o dobro e ele vai me ajudar a bancar os estudos.”.
D. Tereza não se conteve e começou a chorar. Precisou ser amparada pela amiga Isaura, pois quase desmaiou de emoção.
“Que alegria meu neto. Se avô deve estar orgulhoso de você!”, respondeu com a voz embargada.
No dia seguinte Genilsinho foi na Pedraria dar a notícia e se despedir de seus colegas. A notícia caiu como uma bomba... ninguém queria perder o amigo querido.
“Parabéns moleque, fico triste em te perder, mas feliz em ver o seu crescimento!”, disse D. SIlvana da contabilidade.
“Vamos perder nosso melhor funcionário!”, declarou aos berros Pedrosa do RH.
Uma verdadeira festa foi improvisada. Bolo, salgadinho, refrigerante e até cerveja apareceram rapidamente, pedidos por D. Silvana na confeitaria da esquina.
“Tudo por minha conta meu filho, você merece!”, disse ela emocionada.
Ninguém mais trabalhou naquele dia. A festa durou até o horário do almoço e na hora da despedida quase deu pra encher uma piscina com tanto choro.
“Ele vai fazer falta.”, comentou baixinho o motorista Souza com o ajudante Mariano.
Genilsinho deu adeus aos antigos colegas e rumou para a construtora, localizada no bairro do Rio Comprido. Entregou os documentos, e combinou com Dr. Adilson que começaria no dia seguinte na obra da Gomes Freire no Centro. Era a reforma de uma grande loja de automóveis.
Aproveitou que estava com tempo livre e com as cópias dos documentos e já se matriculou no Ferreira Alves, tradicional colégio na Tijuca que oferecia o supletivo com curso técnico.
Conforme combinado, iniciou no dia seguinte. Conferir e controlar o material era fácil pra quem sempre pegou no pesado. Duas sacas de areia, 1 saco de cimento, 50 tijolos, e assim Genilsinho passava seus dias. Da loja de carros da Gomes Freire para o mercado na Rua do Catete e de lá para o famoso Bar do Maneco no Grajaú. A empresa ia muito bem e trabalho nunca lhe faltava.
No supletivo, superava as limitações com dedicação, sempre contando com a ajuda dos professores. Genilsinho queria de fato aprender enquanto a maioria ali só estava interessada no diploma. Essa característica, logo percebida pelos mestres, lhe facilitava o caminho.
Na obra do Grajaú, O rapaz conheceu Marcela, caixa do estabelecimento. A moça era uma morena bonita, moradora do morro do Macaco em Vila Isabel, não muito longe da Mangueira. Conversa vai conversa vem começaram a namorar.
Genilsinho já tinha vivido algumas juvenis aventuras amorosas, mas com Marcela percebeu que a coisa era diferente. Em pouco tempo já havia conhecido a família da moça e a levado para conhecer D. Tereza. A coisa estava ficando séria.
Trabalhando, estudando e namorando. Tudo corria bem na vida de Genilsinho.
De obra em obra ele ia evoluindo na empresa. Dr. Adilson só estava aguardando o diploma de Técnico em edificações para promovê-lo para o escritório.
“Tricolor, terminando o curso você vai ser meu auxiliar!”, disse ele empolgado.
Certa noite Genilsinho chegou em casa após mais um dia de ralação, e D. Tereza lhe deu uma notícia triste. Parafuso havia sido expulso do morro. Os caros roubados que levava para a favela estavam chamando a atenção da polícia e por isso atrapalhando o movimento da boca.
“Ou ele saia ou iam matar ele.”, disse D. Tereza.
Genilsinho ficou triste mas não se preocupou. Há muito não falava com o amigo de infância e nada poderia fazer para ajudá-lo. Além do mais, seu supletivo com curso técnico estava próximo do fim e a futura promoção no trabalho não saia de sua cabeça.
“Da favela para o mundo!”, pensava ele com ironia.
Agora estava numa obra no bairro da Freguesia em Jacarepguá. Era a construção de um prédio residencial com 4 blocos, o principal projeto da construtora.
“Olho vivo Tricolor, essa obra vai alavancar a empresa.”, disse Dr. Adilson.
A rotina estava pesada. Da Mangueira para a Freguesia, de lá para o colégio na Tijuca e então de volta para casa. Só conseguia ver Marcela no fim de semana, quando então matava a saudade de sua morena.
Mas seria por pouco tempo. Dezembro estava chegando e com ele o fim do tão sonhado curso técnico. Finalmente iria trabalhar no escritório e ganhar um salário ainda melhor. Tinha muitos planos. Queria casar e planejava comprar uma casa maior para D. Tereza. Talvez até conseguiria comprar um carro.
Terminada a obra da Freguesia, já começou a auxiliar ao amigo engenheiro no escritório.
Enfim dezembro. Era chegado o grande momento. O curso estava terminado, o diploma expedido. Era um sexta-feira e não se conteve, ligou para Marcela e pediu que ela lhe esperasse. Queria que a amada fosse a primeira a ver o símbolo da sua conquista.
Pegou o ônibus e partiu para Vila Isabel. Estava eufórico, não conseguia perceber o mundo a sua volta de tão grande que era a emoção. Desceu na 28 de setembro e seguiu para a Torres Homem de onde costumava subir o morro até a casa de Marcela.
Naquele dia estava acontecendo uma operação da polícia. Parafuso havia migrado pro Macaco, onde passou a esconder seus carros roubados. Genilsinho foi subindo, até que em certa altura da favela avistou o antigo amigo. Ele não percebeu mas a polícia subia logo atrás.
Os soldados também haviam visto Parafuso, que atirou na guarnição buscando a fuga pela mata. Genilsinho estava no meio e foi alvejado na troca de tiros. A bala entrou pelas costas e saiu no peito, bem em cima do símbolo do Fluminense, rasgando a camisa do clube de coração que vestia no fatídico dia. Morreu segurando o diploma que havia acabado de conquistar.
Os policiais chegaram onde estava o corpo. Os moradores se aproximavam e logo chegou Marcela, que não podia acreditar no que estava acontecendo, e desesperada, foi segurada pelos vizinhos.
Genilsinho morreu de olhos abertos, agarrado ao diploma.
Sargento Teixeira, que chefiava a patrulha, verificava os pertences do falecido e deixou escapar: “Menos um. Quem se mistura com porco, farelo come.”
Morreu como bandido aquele que sempre buscou o caminho correto, apesar de todas as dificuldades.