O laço que nos une

- É engraçado que, cerca de um mês atrás, eu estava disposto a passar menos tempo no celular e mais em contato presencial - comentei deitado na cama, telefone colado à orelha, enquanto olhava para o teto do meu quarto.

- Sim, parece que isso foi em outra vida - replicou Sílvia do outro lado da linha. - Cheguei a ver o anúncio de uma oficina de desintoxicação digital, ou algo assim... não era um evento barato, acredite.

- Por que alguém pagaria para aprender a passar menos tempo usando o celular? - Questionei.

- Provavelmente, pessoas como você, - provocou-me - que vêem no celular uma extensão do próprio braço.

- Eu moro sozinho, você sabe - defendi-me. - Portanto, o celular me faz companhia. É a minha janela para o mundo, mais do que a janela do meu apartamento, cuja vista não é das mais interessantes. E agora, mais do que nunca, já que as pessoas não podem se visitar enquanto durar essa situação de pandemia.

- Portanto, toda a sua interação com as pessoas agora passa necessariamente pelo celular - assentiu ela. - Mas você deve ao menos estar saindo para ir ao supermercado... ou à farmácia.

- Nada - retruquei. - Faço minhas compras pela internet, entregam aqui no prédio. Ouvi relatos assustadores de pessoas que ficaram doentes indo ao supermercado.

- Bem, eu ainda me arrisco - admitiu. - Tomo todas as precauções na ida e na volta, lavo tudo quando chego.

- Também fazia isso, mas não me parece suficiente. Talvez eu esteja ficando paranoico, mas a rua agora me parece um lugar mais perigoso do que jamais foi. De qualquer forma, temos sorte de poder trabalhar em casa.

- Sim, eu sempre penso nisso. É uma pena que nós não residamos no mesmo prédio, ou em prédios próximos.

- Por quê? Você viria me visitar? - Indaguei curioso.

- Não, eu estava pensando mais em que poderíamos gritar um para o outro, das nossas janelas. E assim, finalmente, você largaria o celular... - gracejou.

- Oh, isso vai ser meio difícil de realizar por ora - ponderei. - Mas eu talvez eu possa soltar balões da minha janela, e esperar que o vento os carregue até você.

- Ou talvez possamos criar pombos-correio - sugeriu - e assim teríamos uma criatura viva intermediando nossas mensagens, e não uma máquina.

- E quando eu segurasse o pombo e sentisse o coração dele bater, poderia imaginar que era o seu coração batendo nas minhas mãos? - Especulei.

- É uma boa imagem e acho que poderíamos pensar nela, já que não temos meios de montar um pombal na atual conjuntura...

- Então, só nos resta o celular. E se algum dia você passar pela minha rua, me ligue que eu irei até a janela; e acenarei para você. Talvez possamos conversar um pouco, aos berros... e fazer contato visual. Não é possível fazer contato visual olhando para uma câmera.

- Não, não é - admitiu. - Eu ligarei se for passar por aí.

- Eu ficarei esperando - repliquei.

Ligação encerrada, ainda fiquei longos minutos olhando para o teto, pensando se deveria me levantar e ir ver como estava o mundo através da janela do quarto. Finalmente, pus o celular para carregar e quebrei temporariamente meu vínculo com ele.

- [01-05-2020]