179 - Quarentena
Olho pela janela e tudo está parado. Deste lado, depois de termos discutido, a calma é tensa e o isolamento maior. Para não te encontrar, desisti de fazer a barba e, hoje, não tomo banho. Vi como fechaste a porta do quarto, como atiraste os tachos, como gritaste com a tua mãe. Depois, sabendo embora que a sua dieta é diferente da nossa, chamaste-a para o almoço, modo indirecto de dizer-me que a comida estava na mesa. Era sempre assim. Nunca assumias nada e os recados eram dados para o lado para que eu escutasse e agisse de acordo. Antes de ficarmos confinados a casa parecia maior e, sem te ver o dia inteiro, eras suportável, urbana, suficiente como esposa e dona de casa. Agora, estalada a beleza, sinto-te pequena, vingativa, amarga. Custa-me, sobretudo, a ironia com que me criticas, a decepção que vejo nos teus olhos, o desgosto que sentes por em vez de outro ser eu o homem da casa. Percebo tudo. A tua mãe como peso, eu como obstáculo, tu incapaz de enfrentar serena este fim de dia. E vamos, cada um de nós, para a mesma cama como se estivéssemos em lados opostos do mundo.