Anarquia sob controle

Gerlinde me levou a passeio pelo centro da cidadezinha onde vivia, no leste da Alemanha. Numa praça bem-cuidada, havia uma escultura em granito, de um homem correndo. Como meu conhecimento de alemão é limitado, para dizer o mínimo, pedi que ela me explicasse do que se tratava.

- É um monumento aos desertores - explicou, rindo.

- Tá de brincadeira? - Indaguei, perplexo.

- Nós não brincamos com algo assim - replicou, bem séria.

- Mas sempre imaginei que, apesar das atrocidades da II Guerra Mundial e tudo o mais, vocês alemães tivessem orgulho dos soldados que se sacrificaram pelo seu país.

- Isso é verdade. O cumprimento do dever, a morte pela pátria, é algo que prezamos muito enquanto nação. Todavia...

Virou-se para o monumento:

- O fato de que milhões tenham morrido pela causa errada, levou muitos a questionar essa noção. Por isso, a estátua. O desertor não é somente um covarde, um fugitivo de responsabilidades: é também alguém que se recusa a cumprir ordens, ou melhor, que as afronta conscientemente por não desejar matar outro ser humano.

Balancei a cabeça, começando a entender o que Gerlinde queria me dizer.

- É um monumento anarquista.

- Creio que pode considerá-lo desta forma - assentiu ela.

Seguimos caminho. Mais adiante, havia um cruzamento, com semáforos e faixas de pedestres. Cerca de uma dúzia de pessoas aguardavam em ambos os lados, para que pudessem atravessar. As luzes para veículos estavam verdes, mas não havia um automóvel sequer à vista, em qualquer direção.

- Estou vendo que o sinal de pedestres está vermelho, mas por que as pessoas não atravessam? - Questionei intrigado.

- Há uma lei que proíbe atravessar a rua com o sinal de pedestres fechado - justificou Gerlinde.

- Mas dá pra ver em ambos os sentidos, por mais de 500 metros, e não há qualquer trânsito de veículos! - Redargui.

- Verdade. Mas nós, alemães, somos obedientes às leis - insistiu.

Aquilo não parecia fazer muito sentido depois que eu vira o monumento aos desertores, mas Gerlinde tinha a resposta pronta na ponta da língua:

- Veja: eu, você e a maioria das pessoas que estão aqui aguardando o semáforo fechar para poder atravessar a rua, temos plena consciência de que, se ignorarmos o significado das luzes e atravessarmos quando não há trânsito, nada de mal nos acontecerá. Mas, e se houver uma criança observando e ela tomar a atitude do adulto como a coisa certa a ser feita? Eventualmente, poderá ser atropelada!

Era duro de admitir, mas Gerlinde tinha razão, mesmo não havendo nenhuma criança próxima, naquele momento.

Assim, em nome do exemplo a ser dado, esperei pacientemente para fazer a travessia junto com os alemães.

- [25-04-2020]