DIA DO LIVRO...23 DE ABRIL, UM DIA FRIO, UM BOM LUGAR PRA LER UM LIVRO.

O sol já se preparava pra se despedir lá pelas bandas do Jardim Eldorado quando o bom e velho Deodato, professor de filosofia e história, deixou o seu corpo cair na confortável poltrona da sala de estar do apartamento 303. O som da boa música de Djavan, o compositor da terra dos marechais, ecoou pelo bloco G do condomínio Mediterrâneo.... Um dia frio, um bom lugar pra ler um livro, o pensamento lá em você, eu sem você não vivo.... -" Isso é mais que música, é poesia!!!" Disse a si mesmo. -"Porquê será que todo escritor fala sozinho? Eu converso com meus personagens!!!" O rádio ligado. Volume alto de fazer tremer as janelas. Os vizinhos detestavam. Um dia frio. Ele andou de roupão azul pela casa. Pantufas. Óculos. O cabelo grisalho despenteado. Barba por fazer. Deodato acendeu um charuto cubano. A caixa de madeira nobre. O isqueiro. Um mimo do amigo Jô Soares. O gordo nunca o convidou pra uma entrevista no programa Jô Onze e Meia. Pudera!!!! Deodato não tinha nenhum livro lançado. Há quinze anos trabalhava num romance que nunca terminava: Trilogia do amor incandescente!! Dizia que seu estilo era uma mistura de Machado, Dostoyevski e Quintana. -" Mudei pois estava muito parecido com Cinquenta tons de cinza!!" Não gostava do final e rasgava as páginas escritas na velha, mais ainda resistente, máquina de datilografia Olivetti. -" Muito difícil encontrar fita pra comprar!!!" Era um escritor as antigas. Nada afeito ao computador. Odiava o tradutor. -" Não gosto. Você tecla infância e entra infame ou infantil." Repetia D. S. Guitierrez, o nome com o qual assinava seus artigos no jornal da cidade, onde era colaborador há vinte e um anos. -"Quem gostaria de um escritor chamado Deodato Severino Guitierrez!?!??? Melhor usar as iniciais do nome. É moda e fica chique. Vão achar que é cubano, espanhol, sei lá." Repetia aos amigos do bar do Fonseca, onde batia ponto, principalmente depois de ser abandonado pela companheira Giselda. -" Você nunca será famoso, Deodato. Sua vida não daria um best sellers. Você é um fracasso." Essa frase dela doeu. O casamento de dois anos terminou após mais uma briga feia, depois que bo bom Deodato perdeu uma boa grana num bingo, um de seus vícios, além do álcool e do cigarro. Fim de seu terceiro casamento. Giselda se encantara pelo professor Deodato. Era um sábio, um lorde, verdadeiro cavalheiro e bom amante. Homem gentil culto e educado. Ela sonhava com uma vida glamourosa e viagens fascinantes mas a única viagem que ele podia proporcionar eram as viagens pela leitura. Ele tinha uma estante invejável com 966 títulos catalogados. A cada semana chegava um livro novo pelos correios. Assinava dois jornais, quatro revistas e gibis da Turma da Mônica e Pato Donald. Deodato lia de tudo, até bulas de remédios com suas letras minúsculas. Preenchia um livrinho inteiro de palavras cruzadas, do nível difícil, em uma hora. Deodato deixou uma lágrima cair ao final da música. Gostava do jeito doce de Giselda, apesar dela viver torrando o cartão de crédito dele com supérfluos. -" Giselda não cozinhava bem. Melhor ter ido embora. Vida que segue, como diz o Chico Pinheiro no jornal Bom dia, Brasil." Sete meses sem Giselda. Deodato pensou em preparar um whisky com gelo. Desistiu. Abriu a geladeira mas nada o apeteceu. Uma banda de melão. Restos de arroz. Ovos. Catchup. Um yogurte vencido foi pro lixo. -" Tenho que ligar pra faxineira. Putz, esqueci de pagar a dona Noêmia!!!!" Um bilhete com imã na porta da geladeira. -"Reunião as oito do Círculo do Livro. Amauri, Schiavo, Katya Forti... hoje não vou, sinto muito." O celular. Ligou e pediu uma pizza grande. Bordas de catupiry. Meio frango, meio calabresa. Pediu um guaraná Antártica -"Pizza com vinho é divino!!! Não tem vinho, vai refri mesmo!!!!" Deodato foi até a sacada. Um dia frio. Um vento gelado. As duas cuecas vermelhas no varal de chão. Giselda odiava aquela cor de cueca. Ele arregalou os olhos. A vizinha linda do 308 lá embaixo. Agasalho de academia de ginástica. Uma viseira. O cachorrinho. Um passeio pela calçada do condomínio. -"Todo escritor se acha um gênio e realmente o somos!" O interfone. O motoboy da pizzaria. Deodato desceu pelas escadas. O portão social. A vizinha com o cachorrinho. Deodato quis impressionar. Fez algo impensável para um mão de vaca igual a ele. Deu dez reais de gorjeta ao entregador. A caixa de pizza quentinha. A sacola com o refrigerante. A vizinha sorriu, pediu licença e entrou, aproveitando o portão aberto. O cachorrinho latiu. O motoboy ajeitou a viseira do capacete. -"Coisa linda essa mulher!!! Valeu pela gorjeta, tiozão!!!!" Saiu com a moto barulhenta. Deodato odiava ser chamado de tiozão. Arrependido de dar a gorjeta. Ele viu a vizinha conferir a caixinha de correspondência. O cachorrinho latindo. Deodato odiava latidos. Ela subiu as escadas. Ele atrás. O perfume dela. Ele todo atrapalhado com as chaves. A pizza. A sacola. Ela se aproximou. -"Eu seguro a caixa, vizinho!!!!" Era a primeira vez que falava mais que um bom dia pra ela. Era a primeira vez que ficava tão perto também. A briguenta das assembléias do condomínio e a pior crítica do novo síndico. Deodato abriu a porta. -"Muito obrigado!!! Não gostaria de me acompanhar na pizza???" Ela pegou o cachorrinho no colo. -" Seria um prazer. Posso trazer um vinho." Era muito bom pra ser real. Deodato foi às nuvens. -" Perfeito." Ele foi às nuvens. -" Preciso de um banho rápido e já venho!!!!" Ela disse com um brilho nos olhos. Ele entrou. Viu, pelo olho mágico, ela entrar no apartamento dela. Correu ele e colocou a pizza no forno. O refrigerante na geladeira. Lavou um prato e uma xícara suja que estavam na pia. Borrifou perfume na casa. Ligou os ventiladores. Ajeitou os travesseiros e a colcha de cama. Conferiu o papel higiênico no banheiro. -" Deodatinho, a sorte mudou e veio com força!! Que brotinho!!" Ajeitou as revistas na mesa de centro. Recolheu as cuecas vermelhas do varal. Tirou os dois porta retratos com Giselda do aparador e os guardou na gaveta da cômoda. Ligou a tevê no canal Multishow. -"Vai achar que sou descolado!!!!" Colocou livros sobre o sofá. Hemingway, Sartre, Aghata Christie, Nora Roberts. Resolveu tomar uma ducha. Passou o melhor perfume. Uma bermuda jeans. Chinelos de couro que comprara em Recife. Abriu o guarda roupas. O que vestir?!??? Uma camiseta do Nirvana que o filho Gabriel esquecera. Ideal e jovem. Gabriel, o rapaz de vinte anos, fruto do primeiro relacionamento, morava com a mãe Regina. A camiseta caiu bem. Batidas na porta e no coração vazio do professor cinquentão. Parecendo um adolescente, abriu a porta. Aliviado por ela não ter trazido o cachorrinho barulhento. -"Entre, por favor. Fique a vontade!!!!" Ela entrou com um belo vestido florido. Uma garrafa de vinho gelado. -"Obrigada. Penélope!!!" Ela estendeu a mão. -"Deodato. Professor Deodato!!!" Ela olhou a decoração do apê. Um sorriso amarelo denunciou a desaprovação. Ele, virginiano, percebeu. Sempre achou bregas aquelas cortinas amarelas que Giselda amava. Nada combinavam com as paredes verde água e o porcelanato preto. -" Eu vou montar a mesa. É rapidinho!!!!" Ao menos ela gostou do sofá retrátil. Pudera, custara os olhos da cara, assim como a tevê de tela grande. -" Professor!!! Sentei num livro. Me desculpa!!!" Deodato sorriu. -"Não liga. Casa de professor, é assim!!! Uma bagunça!!!" Ela foi até a cozinha pra ajudar a montar a mesa. Era gentil. -"Ela tem uns trinta e dois anos, não mais que isso!!!" Pensou ele. A noite caiu. -"Não sei se trouxe um bom vinho!!!! " Deodato a serviu. -"O que faz um vinho ser bom e perfeito é a ótima companhia!! Esse deve estar maravilhoso!!!" Ela corou. Durante o jantar ele revelou ser um gentlemen. Durante o jantar ela revelou ter trinta e sete janeiros. A garrafa quase vazia. Ele não deixou que ela lavasse os pratos. Quis mostrar sua biblioteca. -"Esse quarto virou escritório e biblioteca. Aqui preparo e corrijo provas dos alunos." Ela gostou mais de ver uma bicicleta ergométrica encostada numa canto do quarto. -"Massa.... Preciso de uma dessas!!!!" Deodato nunca sentara nela. Era da Giselda mas pouco usava. Uma febre de academia apenas e dinheiro jogado fora. -" De vez em quando eu pedalo. É ótimo!!!" Mentiu o sedentário. Penélope pousou a mão no peito dele. Ajeitou os cabelos. -" Posso vir aqui pedalar, professor?!???" Deodato sentiu o coração disparar. -"Quando a mulher toca o homem e ajeita o cabelo é sinal que está interessada!!!!" Pensou ele, lembrando de ter lido isso no livro O corpo fala. -" Pode vir quando quiser, Penélope!!!" Ele sugeriu sorvete pra sobremesa. Por sorte tinha comprado um pote, dois dias antes. Por sorte ela adorava sorvete de flocos. -" Abusei do vinho. Ainda bem que moro perto e preciso dirigir. Não o convido pra jantar lá no meu apê pois só faço miojo!! Minha especialidade." Ela ajeitou as almofadas do sofá. Deodato curtiu o bom senso de humor dela. -"Podemos combinar, qualquer noite, ver um filme na Netflix, com direito a pipoca de microondas! Minha especialidade!!" Eles riram. Penélope se levantou. -" Obrigada pelo jantar. Adorei." Ele abriu a porta. -" O dono da casa deve abrir a porta. Assim, a visita retornará!!!!" Ela o beijou no rosto. Eles se reencontraram na calçada do condomínio. Ela com o cachorrinho. Ele vindo da padaria. Ela só desejou bom dia. Uma semana depois. Deodato, apaixonado platônicamente, terminou o livro. Sonhava sempre com Penélope. Era a inspiração que faltava. Deu o nome dela a um dos personagens. Quinhentas folhas foram enviadas a editora, após a amiga Eliane ler e revisar. -" Finalmente, lancei meu primeiro livro." Vibrou o autor de Trilogia do amor incandescente!!! Um mês depois da festa de lançamento do livro. Deodato viu a moça sair do carro na garagem. Uma chuva fina numa tarde modorrenta. Ela com uma mala grande. O porteiro a ajudou. -" Por isso Penélope não foi ao lançamento. Estava viajando!!!" Três horas depois, Deodato colocou um livro num saco de papel brilhante. Uma caixa de bombons. Uma rosa e uma garrafa de vinho. Cheiroso, banho tomado. Bateu na porta do apartamento de Penélope. Demorou longos cinco minutos pra ela abrir a porta. Ele escancarou um sorriso do tamanho do mundo ao vê-la num roupão rosa. -" Olá, professor!!! Tudo bem?!??" Ela não escancarou a porta. Estaria ocupada, certamente. -" Desculpa se atrapalho. Lancei meu primeiro livro. É um presente pra você!!!" Ele escondeu a rosa e os bombons atrás das costas. Ela pegou o livro. -" Legal. Muito obrigada!!! Talvez eu leia!!!" Um rapaz de roupão azul apareceu por detrás dela. -" Vem logo amor. Vamos continuar vendo A casa de papel.... Oi, tiozão!!!!" Deodato odiava ser chamado assim. Odiou mais ao ver o motoboy com sua musa inspiradora. -"Se estavam de roupão é porquê já estavam de caso!!! Ele a chamou de amor!!" Pensou! Voltou mucho pro seu apê. Jogou a rosa e o coração no lixo. Tomou metade da garrafa de vinho. Tomou comprimido pra dormir. No mês seguinte. Uma ligação do filho. Uma ligação de Giselda, querendo voltar. Desligou na cara dela. Uma ligação da editora querendo publicar outros livros dele. Uma matéria de meia página sobre seu livro na Folha de São Paulo. Um sucesso estrondoso de vendas. Um elogio de Paulo Coelho. Deodato passava noites em claro até que terminou, em tempo recorde, de escrever seu segundo romance: Trilogia do amor ingrato. Outro lançamento. Outro sucesso de crítica e vendas. A conta bancária dele engordou alguns milhões de reais. Enfim, poderia se aposentar e curtir a vida. Alugou o apartamento e comprou uma bela casa num condomínio fechado. O filho aceitou o convite pra ir morar com ele. Deodato levou o filho a Disney, realizando um sonho antigo, mais dele que do filho. Foram juntos a Nova York, Paris e Moscou. Estava realizado ao conhecer a terra natal de Dostoievski e Tolstoi. Fala sempre de D.S. Gutierrez na terceira pessoa, igual ao que faz o Edson Arantes do Nascimento ao falar do Pelé. Esses escritores são mesmo estranhos!!! FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 25/04/2020
Reeditado em 25/04/2020
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