DRESDEN, 1945
Duas vizinhas aproveitam um dia de trégua nas nevascas para ir ao mercado local. Enquanto caminham pelas ruas movimentadas do centro da bela e histórica Dresden, repletas de pessoas indo para lá e para cá aproveitando o dia de tempo anormalmente bom, vão conversando sobre uma gama variada de assuntos.
Quando dobram a esquina do prédio do correio, escutam o som de um avião ecoando bem alto. Olhando contra o profundo céu azul, tentam descobrir pelo som do motor e silhueta da aeronave qual o seu modelo, e se era alemã ou não. Como a máquina ia a grande altitude, não conseguiram distinguir muito bem o seu perfil; mas como o zunido do motor era perfeitamente reconhecível, isso lhes trouxe certo alívio:
Vizinha 1: Pelo ruído, é um dos nossos. Esse motor é genuinamente alemão.
A outra, aproveitando-se da ocasião, sente-se à vontade para tocar num delicado assunto que já lhe oprimia o peito:
Vizinha 2: Amiga… Acho que as coisas não vão bem para nós.
Vizinha 1: Como assim? - Responde-lhe a interlocutora, interessada na mudança grave de tom da vizinha.
Vizinha 2: Acredito que a guerra pode pender perigosamente contra nós. - Fala baixo, para evitar ser ouvida por mais alguém além da amiga. Como se conheciam desde pequenas, sentiam-se seguras para conversar uma com a outra sobre assuntos indizíveis. No Reich, esse tipo de comentário tido como derrotista poderia ser vigorosamente reprimido pelas autoridades e cidadãos fervorosamente entusiastas do regime nazista.
Vizinha 1: Deixe disso, menina… De onde tirou essa ideia?
Vizinha 2: Meu primo veio do Norte e me disse que os bombardeios aliados estão cada vez mais constantes para lá.
Vizinha 1: Mas nossos rapazes devem estar dando conta… - Diz, em tom descontraído, intentando minimizar os temores da amiga. Esta, por sua vez, eleva levemente a voz e acelera o compasso das palavras, buscando convencer a outra da gravidade da situação:
Vizinha 2: E não é só isso! Meu tio disse que bombardeios vão cada vez mais longe no coração do Reich, e seu trânsito tem sido cada vez mais livre…
Vizinha 1: Não acho que seja tão grave assim. Nossos jornais apontam uma situação muito razoável, com a Alemanha contragolpeando cada investida do inimigo.
Vizinha 2: Pois eu acho que falam mentira! Onde já se viu, eles não podem dizer o contrário! - Receosa, limpa a garganta e abaixa a cabeça, pois reparou que falou mais alto do que o bom senso permite. Sua amiga estampa um pequeno sorriso e lhe dá um afago tranquilizador no ombro direito:
Vizinha 1: Mas, bombardeios… Não teriam como esconder. O povo falaria…
Vizinha 2: E fala! Não estou te falando o que me falaram…?
Vizinha 1: Mas o povo fala demais, também. Estamos para além de Berlim, se não atingem nem lá, quem diria cá…
Vizinha 2: E quem garante que não atingem? - Aproveitando-se de uma interjeição complacente da vizinha, que pensava no que responder, esta emenda: - E você vê como as coisas encareceram? Como o pão está difícil, não era assim antes… Algo está me cheirando muito mal.
Vizinha 1: Sacrifícios de guerra… Ainda não está acostumada com eles? Já estamos há anos assim…
Vizinha 2: Mas não era tão ruim! Mesmo em 1918 tínhamos ovos… Hoje não encontro nem para remédio…
Vizinha 1: Acho que você está sendo alarmista demais, amiga. Não há razão para este pânico todo.
Vizinha 2: Estou pensando seriamente com meu marido de irmos para a casa dos irmãos dele…
Vizinha 1: Está maluca? - Exclama, espantada. Aquilo era drástico demais. Os cunhados de sua vizinha moravam quase que dentro da floresta, lá para os lados da Áustria. Era um lugar deveras isolado: - O que vocês vão fazer por lá? E seu marido sabe cortar lenha, você sabe coletar frutas no mato? Teu lugar é aqui, mulher! Esses teus parentes estão enchendo tua cabeça com caraminholas…
Vizinha 2: Pois eu vou! Quero ir mesmo! Aqui nem trabalho achamos direito, nosso dinheiro está cada vez mais curto. Eu é quem não vou me arriscar neste lugar… Os Aliados certamente nos mirarão…
Mais espantada ainda, a outra para o passo, e olha seriamente a amiga que avança lentamente pelos caminhos escorregadios de gelo. Como esta não parou a marcha, acelerou o passo para emparelhar com ela novamente e pôs-lhe a mão nas costas, falando num tom bem mais sério do que antes:
Vizinha 1: Amiga… É sério… Não fale uns absurdos desses. Você está sendo muito alarmista! Não é para tanto, eles não conseguiriam vir até aqui… Sei que não estamos tão bem quanto antes, mas achar que… Bombardeariam Dresden, aí já é demais! Acho que está maluca.
Vizinha 2: Gostaria de estar! Mas tenho medo. Não tenho mais idade para me arriscar assim. Quero ver meus netos voltarem do serviço militar.
Vizinha 1: Deus queira que voltem! As coisas vão ficar bem, você vai ver…
E, assim, as duas amigas chegam ao mercado. Subindo penosamente os degraus da histórica edificação, mudam de assunto e passam a falar de cereais e laticínios, misturando-se no meio da multidão fervilhante que acorre ao local para abastecer suas despensas antes do fim da bonança. No horizonte, nuvens assomavam e o vento constante parecia indicar o retorno da nevasca.
Menos de dois meses depois, Dresden foi severamente bombardeada.