Este dinheiro é falso
Este dinheiro é falso: 1º testemunho
Naquele dia, a exemplo daquilo que ocorria nas duas últimas semanas, Jobson acordou tarde.
Como vinha fazendo desde a saída da penitenciária de Andradina, onde cumprira dois anos de detenção por roubo, Jobson aproveitava a luz do dia para zanzar pelo centro de São Paulo em busca de emprego, batendo de porta em porta, ouvindo os 'não tem vaga' de sempre, e, mais tarde, mergulhando mais fundo nas entranhas da cidade, [aproveitava] a escuridão da noite em busca de um ou outro desavisado para tentar algum golpe capaz de render dinheiro para o sustento dele, da esposa Edilene e do pequeno Edjonas pelo menos por alguns dias.
Não fora bem sucedido em nenhuma das duas iniciativas.
Os empregos e os 'manés' estavam cada vez mais raros. Aquilo era culpa da crise, sabia ele, pois, com o aumento do número de desempregados, os descuidados passaram a ser disputados, cada vez, por mais gente.
Desesperado, sentindo a fome doer naqueles que mais amava, Jobson estava quase pedindo para Deus devolvê-lo à Andradina. Naquele inferno, apesar das humilhações e sofrimentos, pelo menos, além de comida e roupa, contava com os tostões do auxílio-reclusão, que não era muita coisa, mas ajudava a colocar alguma comida em casa. Mas, Deus é muito bom e, ouvindo as suas preces, ao invés de mandá-lo de volta para o inferno, o fez encontrar um velho amigo.
- Estou parado e sem dinheiro - Jobson contou seu infortúnio à pessoa certa.
- Acho que posso ajudar. Se você ainda for o homem que conheci em Andradina, tenho serviço para você.
Jobson começou a trabalhar naquele mesmo dia. O serviço não era exatamente aquele que [ele] desejava ou procurava, mas, na ausência de outro, aquele serviria. Não haveria problemas. Seria um trabalho passageiro e, se tudo desse certo, todos os dias chegaria em casa com algum dinheiro para o feijão e para o leite do pequeno.
O serviço era simples. Meia hora de conversa e, pronto!, tinha decorado as instruções e estava pronto para trabalhar.
Embora pudesse ser realizado em muitos lugares, foi designado para a Estação do Tietê.
Se apresentou às 17h30. Recebeu as chaves e a informação de onde o táxi estava estacionado. Agora, era só esperar pela sorte grande. Passava pouco das seis, quando o serviço apareceu.
Saídas do portal principal da Estação, a freira vinha acompanhada por duas moças. Vinham repletas de mochilas e malas e, pelo jeito inseguro como olhavam as coisas, não moravam na cidade. Uma taça de sorvete não seria melhor, pensou ele. Definida a presa, Jobson se aproximou e, cumprindo a orientação recebida, escancarou um sorriso e perguntou:
- Vão para o Guarulhos? Posso levar as três por $220.
Elas conversaram rapidamente entre si.
- Faz por $ 200? - perguntou a mais nova.
- A gente não vai brigar por vinte pratas.
Jobson abriu o porta-malas e, sem dizer mais uma única palavra, tomou a rodovia Ayrton Sena rumo ao aeroporto. Na meia hora consumida nos quase 26 km do percurso, interpretando cochichos e soslaios, Jobson descobriu que as moças vinham de um encontro religioso em Vargem Grande e, ainda que, embora fosse a única vestida com hábito e, aparentemente, fosse a mais velha, a freirinha não era a 'chefe' e dividia com a mais nova e falante, a liderança do grupo. De qualquer forma, concluiu Jobson, aquele era o grupo ideal para o seu serviço de estreia.
Ao chegar no aeroporto, a feirinha sacou duas notas de $ 100 e entregou a Jobson, que, de forma extremamente ágil, executando o movimento encenado muitas vezes, ao tempo que saia do carro para abrir o porta-malas, aproveitava a distração do movimento para colocar as duas cédulas recebidas num bolso e retirar outras notas de outro [bolso].
- Tá pensando que sou otário, minha senhora? - gritou ele, acenando as notas recém retiradas do bolso.
- O que foi? - balbuciou a freirinha, que, surpresa e assustada com o escândalo, não conseguiu dizer mais nada.
- O que aconteceu? perguntaram as outras mulheres, igualmente assustadas.
- Ela me pagou com notas falsas - gritou Jobson, sem parar de acenar as cédulas falsas.
Foi aí quando, do nada, uma voz masculina não prevista por Jobson quase estraga a sua estreia.
- Calma. Vamos ficar tranquilos. Falsificação de dinheiro é crime federal e, para nossa sorte, aqui no aeroporto tem uma delegacia da Polícia Federal. Vamos acionar os federais e eles saberão o quê fazer - disse o rapaz que, aparentemente, esperava as religiosas.
Jobson não estava preparado para aquilo e, ao ouvir o nome 'Polícia Federal', sentiu um calafrio pelo espinhaço, que o fez pensar em desistir do golpe. Mas, Deus estava do seu lado e, antes que pudesse abrir a boca para recuar da querela, ainda nervosa, a freirinha falou:
- Não. Eu não quero confusão. Deus sabe que estou certa, mas prefiro pagar de novo - e, insistindo que jamais faria uma coisa errada, sacou outras duas cédulas de $ 100 e passou para Jobson.
- Verifique logo se estas notas são boas - o rapaz falou com alguma rispidez.
Intimidado, Jobson retirou a bagagem do porta-malas e saiu em disparada.
Naquela noite, depois do jejum de alguns dias, finalmente, Jobson chegou em casa com uma pequena feira
Deus - que, como ninguém, escreve certo com linhas incompreensíveis às pessoas - sabia o quê estava fazendo.
Este dinheiro é falso: 2º testemunho
Foram apenas três dias.
Um período maravilhoso. Desses que deixam lembranças para o resto da vida.
Internas no Centro Mariapolis Ginetta, em Vargem Grande Paulista, a menos de 50 km de São Paulo, sob os auspícios do padre João Januário, pároco da Igreja do Bom Retiro no Recife, as noviças Tereza, Célia e Carla viveram a sonhada imersão total nas coisas do Movimento dos Foccolares, rezando e participando de missas dedicadas aos necessitados, acompanhando palestras sobre a vida santa da fundadora Chiara Lubich, fazendo passeio virtual pela cidade italiana de Trento, estufa, nascedouro, berço e sede mundial do Movimento, conhecendo os fundamentos da Economia de Comunhão, assistindo filmes sobre as outras Mariápolis espalhadas pelo mundo, conhecendo gente de todo o Brasil, que, como elas, também acreditavam na força revolucionária da Comunhão como instrumento de paz e realização. Se pudessem, ficariam ali por toda a vida.
Mas, infelizmente, o retiro chegou ao fim e, com um gostinho de quero-mais, retornariam para a Mariápolis de Igarassu. Estariam alegres, revigoradas e repletas de informações para compartilhar com os seus.
No almoço de despedida, no grande salão comunal do Centro, um pequeno contratempo as deixou inseguras. Pudera. O padre João Januário, que as guiara desde o Recife, avisou que precisaria seguir para São Paulo logo em seguida e não poderia acompanhá-las no ônibus contratado para conduzir o grupo desde Vargem Grande até o Terminal Rodoviário do Tietê, cuja partida estava programada para às 17h. O padre ainda tentou acalmar as 'suas meninas' - como ele chamava as noviças Tereza, Célia e Carla entregues à sua guarda pela maioral da Mariapolis de Igarassu.
- Não há motivos para preocupação. Estarei no Aeroporto de Guarulhos esperando por vocês.
Isto, no entanto, não foi suficiente pra dissolver a angústia que tomou conta das moças.
Foi uma tarde de aflição. Como fariam para chegar ao aeroporto? Como achariam o balcão da companhia certa naquele lugar tão grande? E se pegassem o avião errado? As dúvidas as atormentavam e, aflitas, dedicaram as últimas horas no Centro Mariapolis Ginetta às orações. Por segurança, na hora de tomar o ônibus, além do terço recomendado às amigas, a noviça Tereza decidiu viajar trajada com o hábito religioso usual.
Com o sangue acelerado e mãos frias, embarcaram e, de tão entretidas nas orações e pensamento pessimistas, sequer perceberam os engarrafamentos que passaram a travar a Rodovia Raposo Tavares com a chegada a São Paulo. Um friozinho na barriga anunciou-lhes a chegada do ônibus ao terminal rodoviário. E agora? Sem alternativa, desceram do ônibus, pegaram as malas e, visivelmente trêmulas, saíram à rua.
Mas, Deus é grande e, tão logo cruzaram o grande portal da Rodoviária, parecendo ler a aflição que as perturbava, um taxista se apresentou e se ofereceu para levá-las ao aeroporto.
- Vão para o Guarulhos? Posso levar as três por $220. - o homem abriu um sorriso artificial.
O preço era extorsivo. Um roubo. Uma fortuna. Mas, o quê fazer? Era uma forma de chegar ao aeroporto.
-Será que faz um abatimento? - as noviças se perguntaram, sabendo que, de qualquer forma estariam sendo roubadas. Mesmo assim, sabendo que estavam com os tostões contados, não custava regatear.
- Faz por $ 200? - perguntou Carla, que embora fosse a mais nova, era as mais despachada das três.
- A gente não vai brigar por vinte pratas - o motorista abriu o porta-malas e arrumou as malas e mochilas.
Sem dizer mais única palavra, o motorista dirigiu por quase meia hora pela rodovia até Guarulhos.
- Qual a companhia do voo de vocês? - quebrando o longo silêncio, o motorista perguntou ao chegar ao aeroporto, dirigindo o carro para o terminal cuja placa mostrava o nome da companhia.
Foi quando começou a provação.
Ao tempo que espichavam olhares esperançosos pela pequena multidão, que entrava, saía e esperava, aglomerada na entrada do terminal, em busca do padre João Januário, a noviça Tereza pagava ao motorista com duas notas de $ 100.
Daí em diante, tudo foi muito rápido e confuso. Como num filme acelerado, depois de bater a porta com violência, ao invés de abrir o porta-malas, o motorista abriu os braços e, caprichando na agressividade, gritou para a noviça.
- Este dinheiro é falso. Tá pensando o quê? Que sou otário? - o motorista acenou as notas como se, deliberadamente, quisesse fazer um escândalo.
- O que foi?... - balbuciou Tereza, que, surpresa e assustada, não conseguiu dizer mais nada.
- O que aconteceu? - perguntaram Carla e Clécia, igualmente assustadas.
- Ela me pagou com notas falsas - gritou o motorista, sem parar de acenar as cédulas falsas.
Sem ter a quem recorrer, encurraladas pela gritaria, sem conter as lágrimas, as três noviças pediram e receberam a ajuda de Deus. No meio da confusão que se formava, do nada, surgiu o padre João Januário.
- Calma. Vocês estão bem? Fiquem tranquilas - falou o padre, inicialmente se dirigindo apenas às noviças e, só então, se dirigindo ao motorista, que, estranha e repentinamente, tinha perdido a agressividade - Falsificação de dinheiro é crime federal e, para nossa sorte, aqui no aeroporto, tem uma delegacia da Polícia Federal. Vamos acionar os federais e eles saberão o quê fazer.
Subitamente em silêncio, o motorista permaneceu calado por alguns instantes, e, antes que [ele] pudesse dizer qualquer coisa, fortalecida pela presença do padre João Januário, a noviça Tereza recobrou a segurança e falou.
- Não vamos chamar a polícia. Eu não quero confusão. Deus sabe que estou certa, mas prefiro pagar de novo. Este dinheiro não vai mudar a nossa vida - e, como faria se estivesse ajudando alguém, a noviça passou outras duas cédulas de $ 100 para o motorista.
- Verifique logo se estas notas são boas - com alguma rispidez, o padre falou para o motorista, que, sem qualquer comentário, retirou as bagagens do porta-malas e saiu em disparada.
Aquele dinheiro estava reservado para o jantar daquela noite e, como se cumprissem mais um dos frequentes jejuns a que se obrigavam como prova de fé, as noviças terminaram a viagem ao Centro Mariápolis de Igarassu sem colocar mais nada no estômago.
No dia seguinte, já na Mariápolis, as noviças agradeceram a Deus pela vida e pela chance que tinham de ajudar aos necessitados.
Em Sua grandeza, Deus escreve certo com linhas nem sempre compreendidas aos simples mortais.
Este dinheiro é falso: 3º testemunho
Aquela era a primeira vez que o padre João Januário, pároco da Igreja do Bom Retiro no Recife, cumpria a missão de pastorear ovelhas de outro rebanho. No fundo, não gostava de fazer aquilo, mas, como negar alguma coisa a madre superiora do Centro Mariápolis de Igarassu, que sempre fora tão gentil com ele. De qualquer forma, gostando ou não, por três dias, embora fossem hóspedes formais da Mariapolis Ginetta, em São Paulo, as noviças Tereza, Célia e Carla estariam sob sua responsabilidade. Não haveria problemas. Na ida, o encontro, o check in e o embarque no Aeroporto dos Guararapes no Recife, o voo até Guarulhos, um ônibus até o Terminal Rodoviário do Tietê, outro ônibus até Vargem Grande Paulista e, pronto, [elas] estariam entregues ao Movimento dos Foccolares, que se encarregaria de apresentar-lhes o mundo criado por Chiara Lubich. Naquele período, ao tempo que as noviças mergulhavam na Cultura de Comunhão, se deliciando com cada detalhe da vivência e da convivência, o padre cumpriria outra rotina, participando de seminário a jovens párocos oferecido pela CNBB, revendo velhos amigos de batina e, claro, espairecendo um pouco. Ao final do terceiro dia, retornariam ao Recife e, no aeroporto dos Guararapes, onde tinha começado a missão, as noviças estariam de volta a uma terra conhecida e todos estariam em paz.
Acontece que, pouco antes do almoço de despedidas no centro de convivência da Mariápolis, o grupo de padres seminaristas foi informado sobre uma pequena alteração na programação original: o cardeal arcebispo de São Paulo fazia questão de conhecer os jovens párocos e o encerramento do Seminário seria feito na igreja da Sé. Quanta surpresa, quanta honra, quanta alegria. Só após alguns segundos de euforia, lembrou das ovelhas que tinha sob sua guarda pessoal. Compartilhou a situação com os colegas e a opinião foi unânime: não problema, pois, além de elas estarem em ambiente seguro, como o encontro dos seminaristas com o cardeal seria coisa-rápida, ele já estaria no aeroporto quando da chegada das noviças e, afinal de contas, como disse o padre-orientador, 'já estava em tempo de elas desarnarem'. Mesmo assim, ao sentir a angústia que se apossou das meninas durante o almoço ao saberem da mudança de planos, o padre João Januário quase cancelou a viagem antecipada para São Paulo. Mas, já era tarde para a desistência e, mesmo com o coração apertado, o padre seguiu com os outros seminaristas para a Igreja da Sé.
Como esperado, a audiência com Sua Eminência for curta (apenas o tempo necessário para cumprimentos individuais e uma breve saudação aos párocos visitantes) e muito antes do horário previsto para a chegada das noviças, o padre João Januário já estava à postos no portal de entrada do terminal doméstico do Aeroporto de Guarulhos. Teria sido melhor se tivesse chegado mais tarde, pois, depois de alguma espera, a fome apertou e, por instantes, o padre se afastou do portal para fazer um lanche.
Foi o suficiente.
Quando o padre retornou ao ponto de espera, a confusão estava fornada. Acuada por um brutamontes, a noviça Tereza, completamente pálida, trajada com as vestes clericais e amparada pelas colegas Célia e Carla, parecia estatelada.
- Este dinheiro é falso. Tá pensando o quê? Que sou otário? - o motorista acenava notas de $ 100, como se, deliberadamente, quisesse fazer um escândalo para constranger as noviças.
Sem ter a quem recorrer, encurraladas pela gritaria, sem conter as lágrimas, as noviças estavam no pior dos mundos e, por aquilo que todos os seus conhecidos sabiam, como fariam avestruzes, se alhearam do mundo e pediram a ajuda de Deus. Suas preces foram atendidas, pois, no meio da confusão que se formava, chegado do nada, apressado e decidido a ajudá-las, conforme promessa à madre superiora, surgiu o padre João Januário, cuja aparição deu novo ânimo às moças, que, pouco a pouco, recobraram a consciência.
- Calma. Vocês estão bem? Fiquem tranquilas - o padre falou, se dirigindo, inicialmente, às noviças para acalmá-las.
Satisfeito com a reação 'das suas ovelhas', bem lembrado dos seus tempos de moleque nas ruas de Santo Amaro, quando conheceu toda a sorte de golpes e golpistas, se dirigiu ao motorista, o qual, estranha e repentinamente, perdera a agressividade.
- Vamos nos resolver, companheiro. Falsificação de dinheiro é crime federal e, para nossa sorte, aqui no aeroporto, tem uma delegacia da Polícia Federal. Vamos acionar os federais e eles saberão o quê fazer.
Como se não soubesse o quê dizer, o motorista permaneceu calado por alguns instantes, e, antes que [ele] pudesse quebrar o silêncio, fortalecida pela presença do padre João Januário, a noviça Tereza criou coragem e, com a voz calma das religiosas, falou.
- Não precisa chamar a polícia. Eu não quero confusão. Deus sabe que estou certa, mas prefiro pagar de novo. Este dinheiro não vai mudar a vida de ninguém. Nem a nossa, nem a dele - e, como faria se estivesse ajudando alguém, a noviça passou outras duas cédulas de $ 100 para o motorista.
- Verifique logo agora se estas notas são boas - com alguma rispidez, o padre falou ao motorista, que, sem qualquer comentário, retirou as bagagens do porta-malas e saiu em disparada.
Durante o voo para o Recife, prometendo a si próprio que nunca mais se afastaria de ovelhas sob a sua guarda, o padre João Januário agradeceu a Deus por ter intercedido e dado a melhor solução para aquela situação.
Ele aprendera a lição.
Em Sua grandeza, Deus escreve certo com linhas nem sempre compreendidas aos simples mortais.
(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores, presidente da Associação Brasileira de Engenheiros Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural