um homem morto
deve ter sido o Ricardo:
- Tem um homem morto na escadaria da Santo Antonio!
Deve ter sido o Ricardo porque ele é que era ligado nesses dramas; não o drama profundo: o que é a morte?, mas esses pequenos grandes dramas cotidianos; acidentes de trânsito, brigas de vizinhos, estouros de mocó, batidas de carros, porres e bebedeiras, mulheres novas na Fausta, linchamentos na feira, enquadros da polícia, e mortes na escadaria da Santo Antônio.
Fomos ver o morto.
Quando chegamos ainda não haviam colocado jornal nele; nem acendido vela. Já havia lido o conto - uma vela para Dario, do Dalton Trevisan, mas ainda não havia visto um morto. As pessoas que haviam morrido na minha família eu havia sido poupado de ver, nunca havia ido visitar cemitério, ainda não havia velado corpo; os mortos que eu conhecia eram de filmes.
O morto estava lá, morto.
A boca escancarada, os olhos semiabertos, semicerrados, o peito repleto de sangue; uma poça densa se misturando ao lixo da escadaria.
Era de noite.
Já tinha umas dez, quinze pessoas rodeando o corpo. Gente se benzia, gente conversava, gente ria. Na esquina continuavam a beber e a jogar bilhar.
Olhei de novo para o morto, ele estava definitivamente morto. Tinha cabelos encaracolados, cabelos de anjinho. Parecia o Nandoll, mas eu só fui conhecer o Nandoll muitos anos depois; talvez o Nandoll já esteja morto, ou talvez já estivesse...
O morto estava morto, eu não o conhecia.
A boca aberta, os olhos abertos, a camisa aberta, o peito cheio de sangue.
- A polícia vai demorar pra chegar!
- Nunca vi esse cara!
- Veio pegar um fumo e morreu!
- Pra morrer basta estar vivo!
- Jovem, né?!
- Antes ele do que eu!
- Quem procura, acha!
- Que Deus conforte a família,
- Descanse em Paz.
Mário perguntou pra mim:
- O que você tem? Está em choque?
Olhava para o morto e ele não olhava pra mim, ele me olhava e não me olhava, tudo acabado.
Ricardo sabia das coisas, dos pequenos dramas; eu desde sempre preocupado com os dramas profundos, não sei de nada.