Afinal, morreu ou não morreu.

Quinta-feira, durante a madrugada choveu e aquela manhã estava mais úmida que os outros dias, na casa da irmã, Esperança bebeu uma pequena xícara de café e depois saiu até a parada de ônibus, contornando as poças d'água com dificuldade, pois a anemia lhe roubava as forças.

Quando chegou ao seu local de trabalho, o temido gerente de RH, Sr. Motoloscian, convocou a operária:

- bom dia dona Esperança, por favor, sente-se. Creio que a senhora sabe das dificuldades que o país enfrenta, a economia está estagnada, entretanto para que não houvesse encerramento definitivo das nossas atividades, necessitamos reduzir o quadro de operários, porém não se preocupe que os seus direitos serão garantidos, dirija-se, por favor, ao departamento financeiro para calcularem a sua indenização.

Ao chegar em casa, encontrou seus irmãos conversando na cozinha, Rosa, a irmã mais velha, digo experiente, perguntou se ela queria almoçar, meneando com a cabeça a ex-operária sugeriu que não, entretanto aceitou um copo com água.

Juvenal, o caçula dos três Irmãos, indagou:

- como está a situação da fábrica?

Esperança bebeu um gole, deu um longo suspiro e respondeu.

- vai mal, não esperava ser demitida, foram muitos anos de trabalho, agora vem à dura confirmação, estou desempregada.

Rosa questionou sobre a indenização trabalhista da irmã.

- axi! Não me diz que depois de anos de trabalhos, saíste sem um puto, de mãos abanando?

- trinta mil reais foi o que eu tive direito, mas para minha segurança, recebi em cheque nominal.

Juvenal reclamou:

- muito pouco para uma vida de sacrifícios, do jeito que a inflação está, se não descontares logo esse cheque, estarás ferrada.

Rosa acendeu um cigarro, soltou uma baforada e desabafou:

- Esperança me escuta, temos que encontrar uma saída para esta crise, à situação está cada vez mais difícil, o que se ganha, mal dá para nossa sobrevivência. Lembras quando chegastes? Eu e o Carlos vivíamos nesse cubículo, no entanto a Zuíla voltou, para complicar, grávida, o companheiro dela é um peso morto, meu neto ainda não nasceu e o vagabundo já está falando em "bolsa família", contudo nessas condições em que vivemos não é possível continuar.

Quando Juvenal se despediu das irmãs já havia escurecido. Esperança foi se deitar, o pensamento resvalou para os problemas, até que enfim adormeceu.

Acreditava que nunca se casaria, pois os namorados sempre encontravam uma desculpa para fugir do enlace, quando conseguiu abeirar-se ao altar, Esperança não possuía o viço da juventude, estava mais próxima de dobrar o cabo das tormentas. O varão escolhido por Esperança, nasceu na Espanha, mais precisamente na cidade de Alcazaba, cidade com forte influencia árabe. Tinha uma aparência ajuizada que juntamente com uma barba espessa, lhe conferia um jeitão profético, não fumava, não bebia, também não precisou de nenhuma virtude para que a união acontecesse, bastou um sorriso picante e Ali Kamah satisfez o coração daquela que há mui tempo estava no caritó.

Quando migrou para o Brasil, radicou-se ao norte, onde achava que teria melhores oportunidades, era um apaixonado pela natureza, aromaterapia, óleos essenciais, ambicionava comercializá-los, pois a Amazônia tem um potencial inexplorado. Ali não gostava de perder tempo com mulheres imaturas, tampouco em atividades pouco lucrativas.

Seis anos se passaram e o consórcio não deu frutos, apesar do esposo lavrar a terra, repetidas vezes, a mesma terra por onde muitos passaram prevenidos, entretanto, o passado da companheira não era do conhecimento do esposo, essa preocupação jamais lhe ocorrera , mas sabia que a semeadura fora do tempo, não ajuda o agricultor. O casamento quase na menopausa e a rotina do feijão com arroz, muito distante da riqueza da culinária árabe, ajudou a fermentar os açúcares do amor à primeira vista, apesar de ser um homem experiente, Ali kamah caiu em tentação, quando lhe interrogavam os motivos da queda, ele tinha uma justificativa, dizia:

“Um pedaço de esteira velha que está num canto é melhor que uma mulher estéril”.

Um belo dia, quando ainda Esperança laborava na fábrica, foi dispensada mais cedo, a redução da jornada de trabalho forçou a paralisação da produção, ao chegar a sua residência, entrou sem fazer ruído e percebeu com segurança o envolvimento do esposo com a diarista.

A traição colocou um ponto final na relação, porém Esperança não se deu por derrotada, pois em nada contribuía o desânimo, tomou a decisão de procurar uma das irmãs e foi prontamente acolhida por Rosa e o marido Carlos, mas a convivência é um exercício de paciência, o entrosamento fica impossível quando as panelas estão vazias. Rosa ficava estressada pela vadiagem do genro diante das necessidades, por isso, chamava-o de "peso morto", no entanto, José não se importava com o apelido, achava graça e saía cantarolando sem se incomodar com a sogra.

Na sexta-feira, Carlos retornou às pressas de uma viagem pelo interior do Estado, esteve visitando alguns canteiros de obras do programa de governo, “Minha casa, Minha vida”, almejava muito um emprego. Na carteira de trabalho constava, eletricista, mais ultimamente só estava levando choques de realidade, pois era apenas um entre milhões de desempregados. A falta de êxito aumentou as preocupações com o sustento da família.

Rosa, mulher combatente na guerra da sobrevivência, fazia de tudo para embolsar alguns trocados, trabalhava, trabalhava e trabalhava. Possuía mania de limpeza, os parentes diziam que era “TOC”, os excessos da esposa, produziam uma riqueza de dores que obrigavam-na a viver sob o efeito dos analgésicos.

Chegando em casa, Carlos se deparou com um tapete feito com retalhos coloridos, Ele retirou os sapatos, pois sabia que seria impossível entrar calçado em casa, abraçou a esposa, andou em direção as panelas, estavam luzindo, contudo vazias, as pernas dele tremeram, a visão escureceu, a cabeça rodou, por sorte, havia um pequeno banco, acomodou-se nele e falou sem rodeios.

- cunhada, necessitamos da tua ajuda, não dá mais para continuarmos neste aperto, carecemos de tudo, não é possível ficarmos de braços cruzados, esperando que as coisas caiam do céu, precisamos de união para saímos dessa condição.

Rosa interferiu, sugeriu que eles fossem até ao banco, descontariam o cheque da indenização trabalhista, depois planejariam uma saída para a crise.

Esperança solicitou paciência e que Carlos não se afobasse, pois ela detestava precipitação, somente na segunda-feira daria uma resposta.

Dois dias após a demissão, uma irmã por parte de pai, ficou sabendo do fato e resolveu fazer uma visita, era uma ocasião em que poderia levar um auxílio de ordem espiritual.

A seita que Stévia freqüentava, funcionava em um pardieiro, ficava na rua dos embaidos s/n, lá não batizavam com a água, somente validavam o batismo com o fogo, mostravam-se com tendências militaristas, pois os sectários se consideravam varões de guerra do exército para libertação dos dízimos e ofertas (Congregação E. LI. DI. O), a sigla era coincidentemente parecida com o nome do próprio fundador.

Elídio e Stévia foram aos sacolejos em uma velha Kombi. O veículo embalava, engasgava e saltitava como uma perereca, por um milagre, conseguiram chegar ao destino, após os cumprimentos e apresentações o comandante da seita disse:

- dona Esperança, o mundo está cheio de arapucas, por isso, devemos permanecer vigilantes, no mar, há momentos que perdemos o leme, principalmente nas tempestades, nessas horas é preciso ter tranquilidade para não afundamos.

E sem perder tempo, como livro sagrado nas mãos bradou:

- vamos pedir uma revelação do alto e abriu a Bíblia em Lucas 12:32.

Rosa olhou, sorriu discretamente, não enxergou nada de valor material que pudesse render alguns tostões.

Esperança ao escutar o versículo, cerrou as pálpebras e ficou em silêncio.

Elídio, vendo que precisava ser mais enfático, usou de um tom mais persuasivo.

- siiinto periiigo imineeente, o momento é decisiiivo, é agora ou nunca. As legiões de Lúcifer já estão acantonadas, se levantaram contra a senhora e temos que enfrentá-las, é viver ou morrer, entretanto alerto, aqui nada podemos fazer para salvá-la, isso só acontecerá se a senhora participar da vigília que se realizará nesta noite. Pense bem, a ordem não foi dada por mim, mas pelo alto, juízo, para não se arrepender depois.

A decisão não demorou e ela entrou na Kombi velha.

Ao chegarem à rua dos embaidos, onde ficava o “QG” da seita, Stévia foi de uma notável eficiência, estava confiante que naquela noite seria promovida, pela madrugada a vigília esquentou. Stévia fechou os olhos, pronunciou palavras como uma metralhadora dizendo; SUABÁBA, ALIBÁBAH, SACRÁNDA, CANANGA, repetidas como um mantra, contagiaram os membros da corporação, mergulhando-os no oceano profundo da inconsciência, os corpos estremeceram, saltaram e rodopiaram, movidos por um fogo invisível que a todos extasiava.

Domingo, a estrela d'Alva desapareceu, a vigília se encerrou, o sol no horizonte surgiu lentamente, apesar de suas partículas viajarem na velocidade da luz. Um galo anunciou que as escuridões perderam a peleja, mas o "PT", digo, príncipe das trevas, ainda possuía uma jogada "muy caliente".

Durante o regresso, espasmos sacudiram o veículo, o carro embalava, engasgava, até que parou, Elídio tentou novamente o arranque, sempre dava um jeitinho para escapar da revisão, acelerou uma, duas, três vezes, quando se deu conta, o fogo já tinha consumido o motor, por um milagre, o incêndio não devorou os ocupantes.

O companheiro de Zuíla, tendo recebido ajuda do governo, para provar que não era nenhum “peso morto”, patrocinou um almoço festivo no quintal, a parentela sambava e requebrava sob o efeito de uma mistura de cachaça, canela e leite condensado, tão delicioso, quanto perigoso. O famoso "leite de onça" e a música em altos decibéis impediram que escutassem os gritos da população tentando extinguir o incêndio.

José, ao notar a presença de Esperança, Stévia e Elídio, ergueu um brinde, desejou sorte e vida longa para todos.

O evangelizador comandante e sua ajudante de ordens, vendo os efeitos do felino aperitivo, trataram debater em retirada.

Na segunda-feira, Rosa sentiu a falta da irmã, os parentes começaram investigar o desaparecimento, varias pessoas dizem que ela morreu, mas há aqueles que não acreditam.

O tempo passou, Elídio se casou com Stévia, estão felizes da vida, pois o pardieiro se transformou em um belo edifício e o atendimento as almas perdidas é feito com o veículo novo, equipado com GPS.

Ali kamah após a separação, teve uma prole incalculável, como as estrelas do céu e os grãos de areia do deserto.

A propósito, o cheque também sumiu, mas quem encontrar pode descontar.

Gil Braga
Enviado por Gil Braga em 18/04/2020
Reeditado em 23/04/2020
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