BATENDO BLOCO...

Os dias lhe seguiam difíceis como sempre fora.

Menino nascido na comunidade da cidade mais rica do país, vinha duma família que, lá de cima, migrara sonhos.

Ele não era o único, era apenas mais um fruto dentre os tantos que lá chegaram na história recente dali, a acreditar que a cidade grande lhe daria oportunidade de estudo, de moradia, de saúde, de trabalho, enfim, duma vida digna de se passar como anônimo, mas como Ser Humano.

Nunca pretendera mais do que poder viver, nem ele e nem ninguém dali.

A sua infância não conseguira seu lúdico e desenvolvente palco humanístico.

Seu pai levantara com as mãos e alimentava o cômodo de dez pessoas num conhecido ofício:o de ajudar a bater blocos.

Ao derredor, a sua cena social crescia pelo tempo como presépio a se perder de vista, como se os blocos batidos a vista intencionassem tocar os céus financiados por prestações de sonhos inatingíveis.

A cada mínimo provento conseguido com o suor paternal do dia a dia, sob um sol escaldante que tinge as peles de foto envelhecimento precoce, então, a "casa" progressivamente aumentava para cima para acolher cada novo ventre anunciado pela sua mãe, ainda jovem, uma franzina mulher que num espaço de dez anos lhe dera sete irmãos.

Moravam ali, ancorados como ribeirinhos dum dos mais nobres e poluídos rios da cidade, numa localidade em que o rio espumava detritos do todo lixo não reciclado, material e imaterial, a liberar uma essência pútrida no ar, a intoxicar os corpos e almas de quem ali apenas ousasse a passar, olhar, sentir e respirar.

Seu pai, durante longo tempo , permanecera na sua resistência resiliente de sempre, algo robótico quase sobrenatural...a bater blocos e mais blocos, dia e noite, para soerguer a casa cada vez mais bamba a tanta vidas invisíveis que chegavam.

Um dia soube que o pai cansou de bater bloco em vão, enfastiado daquela impróspera situação que lhe fazia calos nas mãos e no peito, foi quando, certa manhã, o menino despertou com a notícia de que seu pai desaparecera dali para nunca mais.

"cadê o pai, mãe?"

"Foi bater blocos em outro lugar" lhe disse ela anestesiada.

Ficaram, então, todos ali, a depender do sustento que nunca viera a contento, agora pelas mãos da mulher que, vez ou outra, fazia algum trabalho doméstico cá e acolá para as mulheres da mesma redondeza.

Nada tinham:nem comida, nem remédios, atmosfera, nem saneamento básico. Só entendiam que doíam todos juntos.

"eu devia é ter aprendido a bater blocos para a cidade grande, ô meninos!" -pensava consigo em voz alta a ensinar o caminho mais provável aos seus filhos..

Todavia,os gestores da região cantavam os seu grandes feitos em prol das pessoas, em discursos cada vez mais falaciosos, o nunca feito,o nunca implementado,o nunca favorecido, a despeito do tudo que faltava planejar por parte dos que deveriam cuidar das gentes.

As últimas tragédias dali até saíram nos jornais, lhes empoderaram por segundo nas notícias momentâneas da telas que venderam as dores lidas e nunca ressentidas, as que sustentam todos os Ibopes bem pontuados do lucro certo.

Foram elas a alada peste dengosa dos mosquitos que matara aos baldes mas sem holofotes e mais um incêndio, dentre tantos, que lhes levou o tudo de tão pouco que restara das tantas vidas...não vividas.

E o bater surdo seguia compulsoriamente...em contínua sonoridade do se estacar blocos de construção pelo todo de tantas vidas desconstruídas.

Então...o menino cresceu, como sempre ainda cresce alguma esperança em nós e começou decidido seu ofício precoce de criança: o de bater blocos.

Um dia chegou uma pandemia viral que varreu as vidas do mundo, a destronar falácias e a desvendar as mentiras do nunca feito em prol das vidas. O tudo negado veio à tona do caos.

O menino, assustado e escondido, foi encontrado dentro da sua casa de blocos pelo flash infalível duma repórter das notícias do dia.

Ela, mesmo já sem ter muito o que noticiar sobre tragédias humanas inéditas, ainda tentou:

"O que você sonha fazer depois da pandemia?" perguntou ao menino.

E ele, com olhos brilhantes, lhe respondeu:

"Eu sonho ser como meu pai... um bom batedor de blocos".

A vida passou...como passa para todos, sem voltar atrás.

Ouvi dizer que hoje, ele um bem jovem já idoso, sobreviveu a tudo do seu tempo a seguir por aí, pelas tantas ruas povoadas de fumaças da vida,a procura dum simples bloco para se rebater, na tentativa de reedificar a própria vida desmoronada em si mesmo.

Nota da autora: baseado em fato real.