VALA COMUM

Começou Sua vida em 1945. Aquele foi sem dúvidas um ano muito significativo. Nasceu em outubro e a Segunda Grande Guerra havia acabado oficialmente em setembro. Um mês e alguns dias após o fim da guerra que mais devastou vidas e sonhos no Planeta Terra. Era filho de imigrantes poloneses que haviam fugido da dominação soviético/alemã do início da Segunda Grande Guerra. Seus pais haviam conseguido refúgio nos Estados Unidos da América ainda em 1939.

Seus pais chegaram em Nova York e dali seguiram após passar pelo serviço de imigração, até uma casinha que conseguiram alugar ao Sul do Brooklin próximo ao mar. Ali conseguiram sobreviver com os frutos de um trabalho árduo mais generoso. Era o auge da produção da indústria norte americana impulsionada pelos esforços de guerra, pois os Estados Unidos tinham se convertido naquele período, no apoio logístico em quase todos os sentidos, dos países aliados contra o nazifascismo. Inicialmente seu pai conseguiu um emprego em uma fábrica de cofres, onde conseguia ganhar o suficiente para sobreviver com a família. Com a constante aproximação dos Estados Unidos com o conflito, que a cada dia tornava-se cada vez mais evidente, a preparação do país para a entrada efetiva na guerra e a quebra da neutralidade fez com que fosse redirecionada a produção para um esforço de guerra ainda maior. Dessa forma, sabia-se que logo em breve o conflito seria travado também, por militares norte-americanos. Nesse contesto, em dezembro de 1941, a fábrica de cofre muda sua produção, por iniciativa de seu dono, para uma fábrica de bife grelhado em lata, que subsidiaria a alimentação dos soldados no campo de batalha. Não perdeu o emprego, mas teve que se especializar em enlatar bife grelhado.

Com os esforços de guerra e a dedicação de seu pai, e ainda é claro toda a política de lucros e logística empreendida pelos Estados Unidos durante a Segunda Grande Guerra, como o Lend-Lease, fizeram com que seu pai conseguisse ter bons ganhos trabalhando na indústria de esforço de guerra.

Em 1945, com o mundo devastado pela guerra (menos poucas regiões, como os EUA), abria-se um rol gigantesco de possibilidades e perspectivas. Dos escombros da guerra saiam duas superpotências ideológico/militares que passariam a determinar os rumos do mundo por algumas décadas, os EUA e a URSS.

Mas o certo é que o mundo era em verdade outro mundo. O mundo em que o velho continente europeu determinava os rumos do planeta com seus imperialismos havia mudado. Os EUA despontavam como um país na era do novo imperialismo onde era sem dúvidas o primeiro exemplar. Todo o seu poder e influência abarcava todas as áreas do planeta onde os soviéticos não puderam impor sua ideologia socialista. O capitalismo saiu como o grande vencedor da guerra.

Seu pai Oton, soube aproveitar as oportunidades que o momento lhe oportunizava. Logo depois da guerra, com o dinheiro que havia ganho durante a mesma, abre um negócio próprio. Resolve produzir comida processada a base de carne, aproveitando a experiência que havia conseguido acumular durante o período em que trabalhou na fábrica ligada ao esforço de guerra. Tem sucesso em seu pequeno negócio.

Tinha outros três irmãos mais velhos que ele, todos nascidos na Polônia antes da guerra. Apenas ele nasceu nos EUA, após a rendição japonesa e consequentemente o fim da guerra. Seus irmãos eram Kristofer o mais velho, Olesia e Elka. Sua mãe era Jadwiga, uma bela, afetuosa e generosa mulher, que se dedicava aos filhos e a preservação da família. Ele era Heiko, que herdou da mãe a dedicação à família.

Sei pai conseguiu dar uma boa vida aos membros da família. O irmão mais velho e ele se dedicaram ao negócio da família com o pai. As irmãs estudaram, casaram e construíram suas próprias famílias com seus maridos em outros ramos de negócio. Kristofer morreu 25 anos depois do fim da guerra. Ficou então do lado do pai e prosperou no negócio fundado por seu pai. Suas irmãs Olesia e Elka foram morar em outras regiões dos EUA. Ficou então sendo o eterno companheiro de seus pais.

Em 1970 casa-se com uma bela moça descendente dos primeiros ingleses a virem para a América do Norte como imigrantes puritanos fugindo das perseguições religiosas advindas das diversas reformas religiosas surgidas naquele continente. Ambos descendiam de famílias que fugiram da morte certa que os perseguiam na Europa.

Tiveram dois filhos. Um belo casal, que receberam sem imposição da mãe dos mesmos, os nomes dos pais de Heiko. Então sua filha recebeu o nome de sua mãe Jadwiga e seu filho o nome de seu pai Oton.

Casou-se com Elizabeth, a primeira e única de sua vida. Era dedicada, boa esposa, boa mãe e excelente contribuinte para aquela nação, assim como seu marido. Formavam um casal necessário para um país que se tornava cada vez mais importante e influenciador nos destinos do mundo.

O negócio fundado por seu pai, foi com o tempo suplantado por grandes marcas na área da comida processada e teve que migrar de negócio. Por indicação do mercado, fundou um pequeno negócio que prestava serviço para hospitais, fazendo a manutenção nos sistemas de oxigenação em hospitais, além de verificação de equipamentos médicos mais simples. Conseguia ganhar o suficiente para ter uma boa vida e empregar outros quatro trabalhadores. O negócio se mantinha estável.

Seus filhos cresceram, estudaram, foram trabalhar no serviço público e contribuíram bastante com o Estado, principalmente de forma tributária. Ele se dedicava a seu negócio com bastante apoio da esposa até quando a mesma pode viver ao seu lado. Ela morreu no início dos anos 2000, por complicações de uma rara doença degenerativa, que não pôde ser curada. Encontrou alento no fato de já ter netos, um de cada um dos filhos e por a esposa tê-lo acompanhado com amor e afeto por uma longa vida. Sentia que havia tido sorte, por muitos fatores, que vinham acontecendo desde antes de seu nascimento, como o fato de seus pais terem migrado, de forma forçada para os Estados Unidos. A vida não era tão ruim assim.

Continuou com a vida e com o trabalho, produzindo dividendos para o Estado. Até que resolveu em 2007 pegar boa parte das economias e fazer um investimento, pensando nos filhos e netos, no setor imobiliário. Vem a crise e perde tudo o que havia investido. Explode a crise do Subprime. Tal crise afeta seu negócio e faz com que o mesmo tenha um grande retrocesso. Demite dois dos seus quatro empregados. Não desanima e continua trabalhando e lutando com afinco para superar as perdas.

Foi sempre um otimista e patriota. Adorava seu país e se dedicava dia após dia para contribuir com o mesmo. Não queria e nunca havia tirado proveito do mesmo. Era em essência um autêntico cidadão patriota norte americano, embora de origem polonesa. Sentia orgulho por ter contribuído tanto com seu país.

Dez anos depois, consegue respirar um pouco mais aliviado e contrata mais dois funcionários, voltando seu negócio a ter quatro empregados. Em 2019 vê a possibilidade de modernizar seu negócio e repassar a um dos netos que se interessa pelo mesmo. Deixando claro que é uma empresa da família e que pertence a todos. Então, em dezembro de 2019, vê boas possibilidades para sua velha empresa, pois observa nela todo o período de luta de seu pai desde a fundação da pequena fábrica de carne processada. Assim, repassa sua pequena empresa com possibilidade de expansão para seu neto.

Tudo parecia ser favorável no início de 2020, ainda que tivesse a ameaça de uma nova doença mortal, já com vítimas na China, ainda em 2019. Resolve morar sozinho em uma casa que havia sido de seus pais e que nunca tinham ele e os irmãos resolvidos se desfazerem da mesma.

Aos 75 anos existia dentro de si um sentimento de que havia feito sua parte. Costumava dizer:

- Sou feliz por ter conseguido ter nascido em uma boa família e ter conseguido formar uma boa família, com liberdade de escolha e sempre trabalhando e fazendo o melhor para a grandeza de meu país.

Realmente era um patriota e um apaixonado por sua vida e família.

Havia contratado há bastante tempo serviço de atendimento hospitalar e feito um fundo de pensão que com certeza haveriam de proporcionar uma boa vida até o fim da mesma.

Os problemas referentes ao vírus que se espalhava pela província de Hubei na China ainda em janeiro, já despertava preocupação por parte de algumas pessoas, mas, contudo, governos mundo afora, achavam que era um problema da China.

O vírus chega aos EUA e inicialmente, os governos regionais e o governo central acham que seria logo vencido pelos avanços da medicina e pelo excelente sistema de saúde que o país possuía na visão particular de cada um. O governador do estado de Nova York, por onde inicialmente o vírus entrou no país, afirmou em março que a cidade possuía o melhor sistema de saúde do mundo. E sem respeitar pontos de vista ou riqueza de pessoas ou países, o vírus se espalha rapidamente. Planta medo nos corações e mentes das pessoas, ricas e pobres, pois ele não faz essa distinção.

Em abril milhares de pessoas morrem, ultrapassando as mortes em outras nações assoladas pelo vírus mundo afora. Nesse contexto de isolamento social, fragilidade do sistema de saúde do país e da cidade de Nova York, da falta de um sistema público de saúde, dos esforços insuficientes e do quadro cada vez mais devastador provocado pela covid-19, a situação na cidade torna-se um caos. Sozinho, embora se comunicando com a família por meio das redes sociais, Heiko é contaminado pela covid-19 e não avisa a família, com receio de contaminar filhos e netos.

- Está tudo bem. Dizia.

- E as coisas que você precisa?

- Tenho comida e remédios para passar um ano sem comprar.

Os filhos ficavam então tranquilos. A evolução da doença em Heiko foi devastadora. Quando decide procurar ajuda em um hospital próximo, mal consegue chegar até lá. É logo internado e chega em complicações de UTI. Não avisa os filhos e morre.

Não havia levado nenhuma documentação. Não havia informado nenhum dos filhos ou netos. Não constava no rol dos que tinham parentes. Ali morto, literalmente não existia mais.

Para que o leito fosse desocupado e por não ser mais conveniente “guardar” os cadáveres, foi levado para o serviço funerário que lidava com os cadáveres sem parentes e sem condições de pagar as despesas do hospital ou as despesas funerárias, e que não eram reclamados por seus parentes. Esses eram enterrados em uma vala comum em Hart Island, uma região usada para enterrar esse tipo de ser humano, desde o século XIX. Pessoas não reclamadas por seus parentes e expurgadas por suas despesas médicas e funerárias.

Ali foi enterrado o patriota estadunidense com uma vasta e longa história de dedicação a seu país e a sua família. Um vencedor por ter sido resultado de uma fuga da morte certa, que seus pais poderiam ter tido na Polônia, nas mãos de Adolf Hitler ou de Josef Stalin. Heiko estava ali enterrado, abatido aos 75 anos por um vírus que atravessou o mundo matando milhares de pessoas, até abatê-lo, como abatia pessoas boas ou más por onde passava em todas as partes desse belo e acolhedor planeta.

Foi esquecido, mas não se esqueceu de sua história e da importância da família e de uma nação, que deve ser antes de tudo acolhedora, para aqueles que constroem sua riqueza e sua história.

O que realmente ele pensava?

“O que importa é o que você foi em vida e não o que poderá ser depois de morto... a não ser que sirva de uma boa e viva inspiração”.