Tempos interessantes

- Soube que você vai partir - comentei, quando Jeremy e eu nos sentamos num salão de chá às margens do rio Huangpu, com vista para as torres futuristas do distrito Pudong em Xangai.

- Sim; Jiang estava apreensiva, a princípio, mas agora entendeu que pelo bem da educação dos nossos filhos, será melhor nos mudarmos para Londres. Em definitivo - afirmou, muito sério.

- Mas há boas escolas internacionais aqui, em Xangai - relembrei. - Você poderia ter matriculado seus filhos em qualquer uma delas. Como estrangeiro, não está obrigado a seguir o currículo oficial chinês.

- Bem... é mais do que isso - reconheceu ele. - Jiang e eu tínhamos a certeza de que passaríamos o resto de nossas vidas na China; até porque, ela é daqui. Portanto, fazia sentido que as crianças frequentassem a escola local.

- Isso tornaria a vida delas mais fácil no futuro - assenti.

- Ocorre que estou cansado de ter que lidar com a burocracia chinesa - prosseguiu. - Para um estrangeiro ter um negócio aqui, pequeno que seja, é um pesadelo. Está cada vez mais claro que os chineses nos toleram, mas não nos querem como residentes permanentes.

- Acho que, no seu caso, não ajuda muito você ser cidadão britânico - avaliei. - Não pensou em ir para Hong Kong, em vez de Londres?

Jeremy abriu as mãos sobre a mesa.

- Hong Kong não é mais o que era antes... quando ainda fazia parte do Império Britânico. A situação política lá anda instável, você sabe. Protestos praticamente todos os dias.

Sim, mesmo com a internet censurada da China continental, eu tinha conhecimento das manifestações na ex-colônia britânica. Talvez não restasse outra alternativa para Jeremy e sua família que não fosse partir para a cosmopolita Londres.

- E quanto a você? Vai se fixar mesmo em Xangai? - Indagou ele, curioso.

- Eu não tenho família. E também sou apenas o representante local de algumas empresas dos Estados Unidos - enumerei. - Meus laços com a China são puramente comerciais, não tenho vínculos afetivos com essa terra. Posso estar hoje em Xangai e daqui à seis meses ir para Pequim. E entretanto...

Olhei para a silhueta das torres de Pudong, do outro lado do rio, e depois para Jeremy:

- Talvez justamente por não ter as amarras que te prenderam aqui durante todos estes anos, eu me sinta mais livre para ficar. Creio que a China está num momento muito interessante de sua evolução como potência mundial, e de minha parte gostaria de permanecer mais tempo para acompanhar isso de perto.

Jeremy fez um aceno de concordância.

- Creio que o ponto a ressaltar no que você disse é "momento interessante". Deve saber que há um velho ditado chinês... ou talvez seja uma maldição... que diz "espero que você viva tempos interessantes". Tempos interessantes, como deve saber, são épocas de agitação, tumulto.

Tive que sorrir.

- Na verdade, não há tal ditado chinês. Se bem me lembro, foi criado justamente por um embaixador britânico, que teve seu carro metralhado pouco antes da invasão japonesa. Para ele, certamente, a saída da China deve ter sido um momento particularmente interessante...

- Eu desconhecia esse fato - admitiu Jeremy. - E você sabe o que aconteceu ao tal embaixador?

- Apenas que ele nunca mais voltou à China.

- Talvez eu deva tomar isso como uma lição - ponderou Jeremy, parecendo conformar-se.

Contra a luz difusa do crepúsculo, na margem oposta do rio, as esferas cor-de-rosa na torre da TV Pérola Oriental pareciam prenunciar um futuro bem mais pacífico - e certamente, muito menos ameaçador.

- [12-04-2020]